Há 19 anos que Ana Barreiro, residente em Sintra, espera e desespera por um médico de família. Ana não tem um rim e todos os anos, quando chega a altura de fazer exames, conhece uma cara nova no centro de saúde. "Sou eu que tenho de pedir os exames e nunca é o mesmo médico a ver os resultados. Sou atendida por quem está de serviço. Ninguém segue o meu caso".
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Ana tem 60 anos e é uma entre 1,2 milhões de portugueses sem médico de família atribuído. Uma entre 1,2 milhões de utentes que sente na pele o fracasso da promessa feita há quatro anos pelo ministro da Saúde Paulo Macedo.
Nos programas eleitorais para as próximas legislativas, os partidos renovam as promessas de cobertura total de médicos de família. Mas enquanto a coligação PSD/CDS-PP adia a concretização do objetivo que falhou para 2017, o PS surge mais cauteloso e compromete-se a resolver metade do problema (médico de família para mais 500 mil utentes) nos próximos quatro anos [ler na página ao lado].
Mas o que impediu a concretização do objetivo nos últimos quatro anos? A aposentação de especialistas em Medicina Geral e Familiar (cerca de 1400 em cinco anos) e a aposta tímida na abertura de Unidades de Saúde Familiar (USF) - 126 nos últimos quatro anos - foram as principais condicionantes.
O atual panorama dos cuidados primários é o de um país que corre a duas velocidades, com regiões quase cobertas, como o Norte, e outras muito desfalcadas, como Lisboa e Vale do Tejo, onde quase 70% dos utentes não têm médico de família. A própria Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) recomendou este ano a correção destes desequilíbrios, de modo a que estes cuidados de elevada qualidade sejam acessíveis a toda a população.
Só no Agrupamento de Centros de Saúde de Sintra há 111 mil utentes sem médico de família atribuído, quase tantos como em toda a Região Norte (112 mil), segundo os últimos dados da Administração Central do Sistema de Saúde.
As desigualdades no acesso acontecem até debaixo do mesmo teto. Na unidade de Rio de Mouro, onde Ana Barreiro está inscrita, há uma USF e uma Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados ( modelo tradicional dos centros de saúde) e as diferenças são gritantes. "Os utentes do primeiro andar têm tudo, marcam consultas com facilidade, falam com os médicos por telefone, enquanto os do rés do chão são tratados abaixo de cão e têm de madrugar para serem atendidos quando estão doentes". Em Sintra, como noutros pontos do país, a falta de resposta dos cuidados primários tem consequências na afluência aos hospitais. E o último inverno deu provas disso, com vários serviços de Urgência em rutura.
"Sprint" para minimizar danos
Reconhecendo a importância dos cuidados primários, a tutela está a fazer um "sprint" para minimizar os danos de uma promessa por cumprir. Além de dar novas condições aos médicos aposentados que pretendam regressar ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) - 76 já aceitaram desde abril, embora não se saiba quantos são médicos de família -, aprovou recentemente um diploma com incentivos aos especialistas de zonas carenciadas que aceitem alargar temporariamente as listas de utentes. Mas a medida parece não agradar a ninguém.
"É um disparate, só pode ser desespero", comenta Nélson Rodrigues, da direção do Colégio de Especialidade de Medicina Geral e Familiar da Ordem dos Médicos. "Um médico que aceite esta proposta até vai ter problemas éticos, porque não é possível prestar cuidados de qualidade com listas de mais de 1900 utentes", corrobora Bernardo Vilas Boas, presidente da Associação Nacional USF-AN.
Se os cuidados se degradarem, se as pessoas demorarem mais tempo a conseguir uma consulta no centro de saúde, vão necessariamente recorrer mais aos hospitais, acrescenta Henrique Botelho, da direção da Federação Nacional dos Médicos. Outra consequência pode ser a aposentação antecipada e a saída de mais médicos do SNS para o privado e para o estrangeiro.
"Os profissionais estão a ser submetidos a ritmos de trabalho alucinantes, que põem em causa o trabalho e a sua própria saúde", assegura o dirigente. "E o que leva as pessoas a abandonar a carreira que escolheram, ainda que sob fortes penalizações? Só razões muito fortes". v