Psicólogos dos cuidados paliativos à procura de quebrar o estigma do "fim de vida"
Ana Raquel Martinho e Eduardo Carqueja são psicólogos da Unidade Local de Saúde (ULS) de São João, no Porto, cuja missão é ouvir doentes (e os familiares) a receber cuidados paliativos. Em momentos de vulnerabilidade, dizem, é preciso ter ajuda especializada. O Dia Nacional do Psicólogo assinala-se esta quarta-feira.
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Bastaram três dias para que o hospital de São João, no Porto, integrado na ULS com o mesmo nome, organizasse um casamento para Nance, uma doente oncológica grave que estava a receber cuidados paliativos em casa. Uma cerimónia que contou, inclusive, com o coro da unidade hospitalar. Ana Raquel Martinho, psicóloga a trabalhar nos cuidados paliativos pediátricos e adultos no São João, perguntou se podia fazer o registo fotográfico da celebração. Nance acedeu. Num dia chuvoso de setembro, o JN encontra a psicóloga junto a três fotografias de Nance, colocadas nos corredores do hospital. Em julho deste ano, a psicóloga venceu o concurso de fotografia dos 65 anos da ULS de São João e hoje serve-se do exemplo da utente para refletir sobre a importância de criar um legado, celebrar conquistas e a vida, numa fase em que o sofrimento e a vulnerabilidade são mochilas muito pesadas de carregar. Nance morreu dias antes da entrega do prémio a Ana Raquel Martinho.
“Existe muito estigma associado ao fim de vida. Mas é neste trabalho que conseguimos promover a dignidade e a esperança, isto é, preservar valores e dimensões humanas, que por vezes ficam esquecidas”, afirma Ana Raquel Martinho, de 35 anos, ao JN. A psicóloga não romanceia esta fase da vida e salienta a "grande vulnerabilidade, o sofrimento e as decisões difíceis" dos doentes em fim de vida. No entanto, existe "a nobreza e esta capacidade de viver até ao último instante". Com consciência de cada "caso é um caso", há uma regra que se mantém: a necessidade de manter um "vínculo terapêutico", em que o doente ganha confiança com o psicólogo e ambos fazem um "trabalho de ajustes de expectativas, de adaptação à doença e ao prognóstico", com "tempo e disponibilidade".
Profissionais de saúde também precisam de apoio
Por essa razão, Eduardo Carqueja, diretor do serviço de psicologia da ULS de São João, aponta a importância de ter profissionais de saúde mental especializados em cuidados paliativos. "Não é qualquer psicólogo que deve estar alocado a estas equipas, porque há especificidades muito grandes, que abrange não só o conhecimento científico, mas também o trabalho pessoal que cada psicólogo deve fazer", explica. O psicólogo de 62 anos, há 37 anos a trabalhar no São João, diz que não raras vezes é necessário intervir junto de outros profissionais de saúde, que estão integrados em equipas de cuidados paliativos, dado o contacto próximo com pessoas "que estão em grande sofrimento". "Naturalmente, vai haver perdas, seja de quem morre, seja de quem fica. No confronto do dia a dia, há profissionais de saúde a quem há a necessidade, até por razões pessoais, de disponibilizar apoio emocional", refere ao JN.
A ULS de São João tem 43 psicólogos a trabalhar no serviço geral de psicologia, mas no hospital apenas Eduardo Carqueja e Ana Raquel Martinho dão apoio psicológico nos cuidados paliativos. No caso de Eduardo Carqueja, faz intervenção na área do luto e Ana Raquel Martinho está focada nos cuidados paliativos pediátricos e adultos. Na ULS de São João, também na área dos paliativos, duas psicólogas trabalham nos cuidados primários. Nas equipas comunitárias de cuidados paliativos, há outras duas psicólogas a trabalhar, uma no Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) de Maia e Valongo e outra no ACES Porto Oriental. Nem todos trabalham a tempo inteiro.
O diretor do serviço de psicologia da ULS de São João acredita que o estigma em procurar ajuda psicológica já não se verifica na maioria dos casos. Há hoje uma dificuldade no acesso: na unidade, no serviço geral de psicologia, 1465 doentes esperavam por uma primeira consulta. Mas, mesmo nos cuidados paliativos, em que poderá haver utentes com dificuldades de mobilidade, Eduardo Carqueja lamenta que, para as consultas de psicologia, as deslocações em ambulância tenham de ser pagas. "O mesmo doente paga zero para uma consulta médica no hospital. Mas, para uma consulta de psicologia, terá de suportar o custo da viagem", afirma o psicólogo. No caso do São João, os psicólogos ajustam a agenda das consultas consoante a vinda dos doentes ao hospital.
Pouco acesso a cuidados
"Continua a haver pouco acesso aos cuidados paliativos no geral e muito menos acesso a cuidados de saúde psicológica dentro dos cuidados paliativos", refere Eduardo Carqueja. Em agosto, uma análise da Entidade Reguladora da Saúde apontou que 48% dos doentes referenciados, no ano passado, para unidades do setor privado ou social morreram antes de ter vaga. O responsável lamenta que não seja possível o apoio psicológico chegar mais cedo aos doentes. "O que era necessário era haver uma intervenção prévia, na altura do diagnóstico", esclarece. O responsável reforça que a psicologia no Serviço Nacional de Saúde tem uma oferta "muito limitada".
Este ano e até 31 de agosto, 40 doentes e 41 cuidadores foram acompanhados em psicologia na consulta externa de cuidados paliativos na ULS de São João. No internamento, 54 consultas foram realizadas no mesmo período. No final do mês, "tínhamos oito doentes e seis cuidados em lista de espera para a primeira consulta de psicologia nos cuidados paliativos", respondeu fonte da unidade de saúde ao JN. Sobre a consulta de luto prolongado, foram realizadas 167 atendimentos este ano no pólo do Porto e no pólo de Valongo e 12 pessoas estavam à espera para ter uma primeira consulta.
Ana Raquel Martinho diz que ser psicóloga nos cuidados paliativos não significa trabalhar apenas com o doente "nos últimos dias de vida". "Pode existir muito tempo para trabalhar com o doente e a família. Existem momentos para celebrar a vida, de mostrar que a vida é importante, que importa ser vivida até ao último instante. Espero que o exemplo da Nance sirva para as outras pessoas encontrarem um bocadinho de luz e esperança, em momentos que podem parecer muito escuros", conclui.