Para muitas pessoas com diabetes, cancro ou VIH, há uma luta desigual no acesso a um crédito ou a um seguro. Há uma lei que pode mudar tudo. Direito ao esquecimento é votado esta quarta-feira.
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Aos 30 anos, Daniel Alcácer viveu semanas de "desespero", em agosto do ano passado. Tinha uma casa escolhida, falou com o proprietário e iniciou o processo do pedido do crédito à habitação. No banco, disseram-lhe que tinha de ter um seguro de vida. Contactou mais de 15 seguradoras. A resposta era sempre a mesma: "não é possível apresentar uma proposta". O gestor de eventos tem diabetes tipo 1. Descobriu aos sete anos e, mesmo com a doença controlada, era considerado um risco. O diploma do "direito ao esquecimento", que prevê o fim de práticas discriminatórias no acesso a créditos bancários ou a seguros a quem tenha superado doença grave ou a tenha controlada, como diabetes, VIH e cancro, é votado esta quarta-feira na Comissão de Orçamento e Finanças.
"Senti o que é ter a sensação de, com 29 anos na altura, não poder comprar uma casa porque era diabético", conta Daniel Alcácer. Depois de contactar dezenas de seguradoras, que rejeitaram o seu pedido "sem justificação nenhuma", ainda ponderou fazer um crédito em nome dos pais. Até que uma instituição lhe deu um "sim", mas com um agravamento de 300% no prémio do seguro. Daniel aceitou.
Algo semelhante aconteceu com João Valente Nabais, de 52 anos, e com a mesma patologia. Quis mudar de casa há cinco anos, pediu crédito, porém, recusou a proposta de seguro de vida apresentada pela companhia do banco. "Era muito superior [valor] à proposta da minha esposa", afirma.
Prémio agravado
A instituição bancária sugeriu que o professor universitário contactasse outras seguradoras. Seguiu-se uma longa caminhada. "É outra discriminação para as pessoas com diabetes: ir a várias companhias envolve tempo e disponibilidade", lamenta. João Nabais aceitou uma proposta de seguro, com um valor ligeiramente agravado, mas que se revelou razoável perante todas as outras.
Entre os casos recolhidos pelo JN, o acesso a um seguro de vida para contrair um crédito à habitação parece ser a maior dificuldade. "Carla" (nome fictício) teve "aprovação financeira quase de imediato" por parte do banco. Faltava-lhe a segunda parte.
Entre "20 e 30" companhias de seguros não lhe apresentaram qualquer proposta para um seguro de vida. Recebeu apenas uma resposta positiva, com um agravamento de 100%, que implicaria pagar entre 170 a 180 euros por mês. "Para além da prestação do banco, era completamente impossível", assume.
"Carla" teve uma neoplasia maligna na mama em 2019 e esteve um ano em tratamento. "Os meus médicos dizem que estou apta e posso ir trabalhar. As seguradoras dizem que não". Uma atitude que a trabalhadora na área administrativa recebe com revolta, quase como se lhe dissessem: "você não se enquadra na sociedade", desabafa.
Na casa dos 40 anos, "Carla" sente que está com o "coração nas mãos". Negociou com o banco e obteve , ainda assim, um crédito. "De hoje para amanhã, se me acontece alguma coisa... tenho uma filha e quero deixar-lhe património". A lei do "direito ao esquecimento", assume, permitiria restituir-lhe alguma justiça, a ela e à família.
Recusar a tentativa
Há doenças que se colam à pele, à boleia da discriminação e dos preconceitos. É o caso do VIH e da SIDA. O JN contactou quatro associações que apoiam e defendem os direitos dos seropositivos. Apenas a Liga Portuguesa Contra a SIDA disse ter conhecimento de pessoas que foram discriminadas no acesso a créditos à habitação e a seguros. No entanto, a instituição não se mostrou disponível para identificar os casos.
Existe, porém, algo mais significativo. A mera consciência de que serão discriminados ou que o acesso a determinados produtos e serviços lhes será vedado, mata à partida qualquer tentativa. "As pessoas sujeitam-se ao que havia: não pediam seguro e não compravam casa", explica Amílcar Soares, presidente da Associação Positivo. Desde que existe, há mais de 25 anos, a IPSS "nunca recebeu qualquer queixa contra um banco ou uma seguradora", acrescenta ao dirigente.
A possível aprovação, hoje, do "direito ao esquecimento" na especialidade é uma luz ao fundo do túnel. Para aqueles que resistem à doença ou a ultrapassaram, mantém-se o receio de que a mudança não seja suficiente para contrariar as dificuldades. "Se for aprovada, a lei vai fazer com que nos sintamos pessoas normais. A doença nunca me tinha limitado". Até ao momento em que tentou comprar uma casa, conta Daniel.
Votação
"Direito ao esquecimento" volta à comissão
Depois do adiamento, na semana passada, a pedido do PSD, a votação na especialidade do diploma do "direito ao esquecimento" acontece hoje na Comissão de Orçamento e Finanças. Se aprovado, o documento segue para a votação global. Miguel Costa Matos, deputado do PS e rosto da iniciativa, tem "a expectativa de que não haja mais adiamentos" e que o diploma "vá avante". Do lado dos sociais-democratas, Alexandre Poço garante que o PSD vai "votar favoravelmente à generalidade das propostas de alteração ao projeto-lei do PS".