Carácter de Estado da visita papal traz à baila séculos de relações oscilantes com a Igreja Católica Romana.
Corpo do artigo
De Estado é, à partida, a visita que Bento XVI fará, esta semana, a Portugal, embora o carácter pastoral da estadia seja mais notório. É a convite do presidente da República Portuguesa que o chefe de Estado do Vaticano chega à ocidental costa de onde a mitologia histórica diz ter saído uma onda missionária que abraçou o planeta. Saiu, é certo, mas de mistura com outros interesses mais mundanos, e longe vão os tempos em que o poder terreal era legitimado pelo divino, como longe, mas menos, está a ligação formal do Estado à religiosidade. Mas há aparências de que essa ligação ainda existe, numa informalidade política que põe em sentido a coisa pública face a um fenómeno que envolve larguíssima fatia da população.
Embora o Papa seja reconhecido como chefe de Estado, a Santa Sé não é um país. Nas Nações Unidas, tem apenas o estatuto de observador permanente e, para lá do grande poder que detém, pela via da espiritualidade, o Papado é algo muito diferente da entidade que, noutros tempos, tutelava os países da Cristandade. Tal não impede que a Santa Sé ainda firme tratados com os estados - as concordatas - que regulam relações e concedem, nos países envolvidos, direitos particulares à estrutura eclesiástica posta no terreno. Lá iremos.
Não há, na Constituição da República Portuguesa, referência directa à laicidade do Estado, estando esta patente, porém, numa série de princípios, à cabeça dos quais surge a separação entre o Estado e as igrejas. Ao longo do tempo, desde a queda do absolutismo confessional e de direito divino, com a revolução liberal de 1820, essa relação tem sido oscilante. Se os primeiros liberais eram radicais no anti-clericalismo (lembre-se a extinção das ordens religiosas, em 1834), quase toda a monarquia constitucional foi vivida com uma religião oficial do Estado (a Católica). Só com a República, há cem anos, regressou o estandarte da laicidade, que gerou uma onda de excessos contra a Igreja. E a laicidade não mais deixou de existir, no papel, embora a prática dê outras lições.
Assinada a 7 de Maio de 1940, por Oliveira Salazar e pelo núncio apostólico, a Concordata marcava a reaproximação entre o Estado e a Igreja, que já se vinha fazendo no final da I República, durante a Ditadura Militar e nos primeiros anos do Estado Novo. Embora vincasse a separação entre o Estado e a Igreja, abria caminhos de cooperação, consentâneos com a natureza do regime. O ditador, cuja caminhada política foi feita a par do percurso eclesiástico do cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira, era claro a esse respeito: "Sob o aspecto político, a Concordata pretende aproveitar o fenómeno religioso como estabilizador da sociedade e reintegrar a Nação na linha histórica da sua comunidade moral".
Só em 2004 o primeiro-ministro Durão Barroso e o cardeal Angelo Sodano, então secretário de Estado da Santa Sé, firmaram nova Concordata, mais consentânea com o espírito da Constituição de 1976, mas continuando a constituir uma nota de privilégio em relação a uma confissão esmagadoramente maioritária.
É nesse contexto que todos os indícios continuam a mostrar que, em Portugal, dificilmente a laicidade será assumida nos moldes em que o faz, por exemplo, a República Francesa. E que, para a classe política que nos governa, há nisto tudo muito mais do que uma relação entre estados.