Em 2023, registaram-se 518 óbitos por ingestão de água contaminada e falta de higiene, 57% dos quais em maiores de 85 anos. Por 100 mil habitantes são cinco mortes, um recorde.
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As mortes devido a fontes de água insalubre ou a condições de saneamento e higiene deficientes ou inexistentes não param de aumentar em Portugal, com um novo máximo de 518 mortes em 2023, alavancando a taxa de mortalidade para 4,9 óbitos por 100 mil habitantes, o valor mais alto desde, pelo menos, 2010, quando estava nos 1,1. Melhorias na codificação, uso de poços ou fontanários e águas interiores ou costeiras com bactérias são algumas das explicações avançadas pelos especialistas ao JN.
De acordo com os dados facultados ao JN pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), 57% dos óbitos registados em 2023 concentraram-se nas pessoas com mais de 85 anos, seguindo-se a faixa 75-84, com 28% das mortes. Há preponderância do sexo feminino: seis em cada dez óbitos foram de mulheres.
As mais de 500 mortes registadas representam um crescimento de 9,8% face a 2022. Valor que mais do que quadruplica se recuarmos a 2010, os primeiros dados disponíveis, apurando-se, para 2023, praticamente cinco óbitos por 100 mil habitantes, com maior impacto entre os mais vulneráveis: nos maiores de 85 anos a taxa de mortalidade chegou aos 78,6/100 mil, sendo a segunda mais elevada nos 75-84 (16,6), seguindo-se os bebés com menos de um ano (4,9).
Os óbitos em questão são atribuídos a fontes de água insalubre ou a condições de saneamento e higiene deficientes ou inexistentes, entrando nesta codificação mortes por cólera, febre tifoide, shigelose ou outras infeções intestinais bacterianas, sendo ainda considerados óbitos por doenças parasitárias como a ancilostomíase, ascaridíase ou tricuríase, de acordo com a listagem consultada pelo JN.
E entra aqui a primeira explicação para o crescendo: uma “melhor deteção e codificação das causas”. Assim avança o presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, Bernardo Gomes, que, desde logo, faz questão de vincar a qualidade da água da rede pública em Portugal, sendo o seu “consumo seguro”. De acordo com a entidade reguladora do setor, em 2023, a percentagem de água segura no continente era de 98,77%.
Já o hidrobiólogo Adriano Bordalo e Sá acredita numa subnotificação e que “as situações reais são mais negras”, na medida em que “os hospitais não têm capacidade para fazer o estudo do agente infecioso”. Sublinhando, também, que a “água da rede pública é de boa qualidade”, alerta, no entanto, para as águas dos poços “que podem, de vez em quando, estar contaminadas”.
Mas algumas das doenças elencadas não se contraem pelo consumo de água. No caso do “tifo, o agente é uma bactéria – rickettsia – que é transmitida pela picada de inseto e ácaros, e quando as condições de higiene das pessoas são insuficientes, são atacadas por estes animais”. Já na shigelose, desmonta o investigador do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), falamos de bactérias que existem em “água contaminada, em superfícies como corrimões ou escadas”. Os idosos, porque mais vulneráveis devido à carga de doença, estão mais sujeitos.
Perante os dados do INE, Bernardo Gomes pede “prudência”, entendendo ser importante perceber “se este fenómeno tem tradição territorial, nomeadamente em termos de padrões culturais de uso de água não controlada”. O que pode “levar ao desenho de ações de correção”, defendendo Adriano Bordalo e Sá um trabalho em conjunto dos ministérios da Saúde e do Ambiente. “Se os estudos não forem feitos não conseguimos melhorar a saúde da nossa população.”
Análises
Testar presença de vibrios nas águas balneares
Para Adriano Bordalo e Sá, os indicadores que são atualmente usados para monitorizar a qualidade das águas interiores e costeiras “não são nem de perto nem de longe suficientes para considerar que uma praia está livre destes agentes”. No verão, estudos realizados pelo ICBAS em praias de Aveiro a Viana do Castelo mostram “uma maior concentração de vibrios, bactérias potencialmente patogénicas”, quando os indicadores oficiais dizem que estão aptas a banhos, defendendo que se incluam os vibrios nos indicadores a testar, numa abordagem única, integrando as “condições do ambiente com as humanas”.
A saber
Resistência aos antibióticos
Adriano Bordalo e Sá alerta que “este número crescente de infeções bacterianas a que estamos sujeitos não consegue ser tratado com os antibióticos que estão disponíveis” por se tratarem de “bactérias multirresistentes”.
Poluição da água preocupa
Um estudo realizado pela WWF e pela GlobeScnan revelou que a poluição da água é vista como uma questão “muito grave” por 78% das pessoas inquiridas no nosso país. Igual percentagem foi apurada para o esgotamento dos recursos naturais.