Saídas inadvertidas de doentes das urgências já motivaram um alerta de supervisão, mas continuam a acontecer. Há unidades hospitalares que usam pulseiras e quem defenda que sejam generalizadas.
Corpo do artigo
Os casos de idosos com demência ou doentes psicologicamente instáveis que abandonam as urgências dos hospitais sem ninguém dar por ela, pondo em risco a própria vida e/ou de terceiros, são muitos mais do que aqueles que chegam a ser notícia. As queixas têm vindo a ganhar expressão e, em 2023, a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) decidiu criar uma categoria com as reclamações diretamente associadas a “Falhas no procedimento de alta do doente (englobando as situações de alta sem contacto a acompanhante e falhas de vigilância/controlos de saída)”. Desde então e até ao primeiro trimestre deste ano, recebeu 335 reclamações sobre o tema.
Do total daquelas queixas, 221 ocorreram em 2023, 104 em 2024 e 11 são relativas ao primeiro trimestre de 2025, adiantou ao JN a ERS. Alargando a malha, o volume de processos de reclamação catalogados como “acompanhamento durante a prestação de cuidados” tem outra dimensão: 4056 nos mesmos dois anos e três meses, dos quais 2309 em contexto de serviços de urgência.
A constatação desta realidade motivou, em abril de 2024, um alerta de supervisão aos hospitais sobre o direito ao acompanhamento de pessoas com deficiência, em situação de dependência, com doença incurável em estado avançado ou em estado final de vida. Na prática, o alerta diz que, salvo algumas exceções, o acompanhamento deve ser a regra e não a exceção.
Mas os casos continuam a acontecer. Na semana passada, um doente com Alzheimer, de 74 anos, abandonou sozinho a urgência do Hospital de Vila Franca de Xira (ULS do Estuário do Tejo) e foi encontrado a 16 quilómetros de distância.
A família, revoltada com o sucedido, pondera levar o caso a tribunal para que estes episódios não se repitam. O hospital abriu um inquérito interno e a ERS tem em curso um processo de avaliação sobre o caso.
Instruções a hospitais
Ao JN, a reguladora nota que, no âmbito dos seus poderes de supervisão, já emitiu várias instruções a unidades de saúde na temática do acompanhamento e monitorização dos utentes.
A última instrução da ERS sobre o tema data de 2023 e decorre da reclamação de uma familiar de um idoso com demência que se ausentou da urgência do Hospital de Setúbal e foi encontrado cerca de dez horas depois desorientado e sozinho numa esplanada da cidade.
Entre vários pontos, a ERS instruiu o hospital a garantir que “durante a permanência no serviço de urgência, as pessoas em situação de especial vulnerabilidade sejam devidamente monitorizadas e acompanhadas”. A reguladora lembra que o “desrespeito de norma ou de decisão da ERS” configura como “contraordenação punível com coima de mil a 44892 euros”.
Para evitar ou reduzir ao mínimo estes casos, há hospitais que estão a apostar em pulseiras eletrónicas que acionam alarmes em caso de saída. Face ao quadro de envelhecimento da população e prevalência de demência, o presidente da Associação Portuguesa de Hotelaria Hospitalar, Pedro Pacheco, defende que este uso seja generalizado.
Na Urgência do Hospital de S. João, no Porto, depois de um arranque tímido em 2021, o sistema de pulseiras está a funcionar “em pleno” desde setembro do ano passado e tem sido “uma grande ajuda”, diz Cristina Marujo, diretora do serviço, sublinhando que recebem muitos doentes idosos, que vivem sozinhos, e vão à urgência sem acompanhante.
Campainhas tocam muitas vezes
Há alguns hospitais do SNS, como o São João (Porto) e o Garcia de Orta (Almada), que decidiram atuar por conta própria para minimizar o risco de fuga de doentes. E o balanço é claramente positivo.
No Garcia de Orta, o projeto começou em setembro de 2023 e já foram colocadas 1800 pulseiras com tecnologia de identificação por radiofrequência. “Os alarmes foram ativados largas centenas de vezes, evitando deste modo a fuga de doentes e minimizando o risco clínico associado”, refere a Unidade Local de Saúde Almada-Seixal (ULSAS), esclarecendo, contudo, que nem todos os casos representam tentativas de saída. Em muitos casos resultam de “aproximações involuntárias às portas de saída, sendo difícil estabelecer uma relação direta”.
No S. João, as pulseiras foram lançadas em 2021, mas devido a problemas técnicos e ao facto de serem facilmente destruídas por doentes com patologia psiquiátrica, só estão a funcionar em pleno desde setembro do 2023. Nas portas que dão acesso ao exterior e ao interior do hospital há barreiras com sensores que são ativados assim que se aproxima uma pulseira, explica Cristina Marujo, diretora do Serviço de Urgência da ULS São João.
Os alarmes tocam bem alto e os vigilantes vão ver o que se passa alertando os profissionais de saúde, em caso de necessidade. “O alarme só desliga quando o doente volta a entrar no hospital”, acrescenta. Com muitos doentes na urgência e alguns sem acompanhamento, as pulseiras são “uma grande ajuda”, admite, realçando que a maior parte dos doentes não quer fugir do hospital. “Ficam perdidos no ambiente e quando vêem uma porta querem sair, ir à procura de qualquer coisa”, diz. O risco destas saídas sem controlo existe e, para a responsável, cabe às unidades tentarem minimizá-lo. “Já tivemos alguns sustos, mas agora felizmente já não temos há muito tempo”, assegura Cristina Marujo.
Na ULS Almada-Seixal as pulseiras são aplicadas em doentes com evidência/história de alteração cognitiva significativa, em doentes conduzidos por agentes da autoridade, com mandado para internamento compulsivo, em doentes com risco suicida elevado, entre outros. A colocação da pulseira tem regulamento próprio e implica assinar um consentimento informado.