Carlos Miguel, secretário de Estado das Autarquias, 60 anos, é um homem bem-disposto que lida bem com o passado, apesar dos episódios de discriminação de que foi alvo por ser cigano.
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Na juventude, a PSP recusou-lhe ajuda quando a sua família enfrentava ameaças. Mais tarde, houve membros do PS que se afastaram dele quando preparava a chegada à cadeira de autarca em Torres Vedras. Hoje, tem um gabinete com vista sobre o rio, em Lisboa, de onde define a política local, a sua grande paixão. Em cima de um móvel, está a imitação de marreta, com a inscrição: "Usar apenas em caso de falta de paciência". Foi uma prenda humorada, por ter chegado a governante.
Por que perduram os problemas com algumas comunidades?
O comissário europeu foi a Torres Vedras e teceu elogios ao trabalho feito. Não quer dizer que não haja problemas. No Alentejo, tem havido. Tem a ver com ignorância - está sempre na base de tudo. Temos medo do desconhecido.
Ignorância em relação a quê?
Os poucos contactos aumentam a desconfiança. As situações bem resolvidas acontecem quando há integração. Quando um se entrincheira ou quando cada um fica no seu canto atingem-se extremos.
Há erros dos dois lados?
A discriminação racial tem sempre erros dos dois lados. Um com mais peso do que outro. Um diz que a culpa é sempre do outro. Para haver um teimoso, tem de haver duas pessoas. Não isento a comunidade cigana de algumas culpas e erros, porque todos têm de fazer um esforço para a convergência. Quando nenhum faz esforço, ou só faz um, o outro cansa-se.
Onde aprendeu essa filosofia?
Os 60 anos trazem-nos uma série de problemas, mas também aprendizagens. A minha família sempre foi bem aceite em Torres Vedras. O meu pai foi empregado de balcão antes de ser feirante...
Como conseguiu o trabalho?
Não lhe consigo dizer. Os mais velhos dizem que o fator principal para a integração foi o futebol. Na altura, o Torreense disputava a subida de divisão e era normal haver batatada nos jogos. Ter a comunidade do lado dos torreenses nos confrontos foi determinante. Hoje há muita integração. Há ciganos líderes de associações de pais.
É um ótimo sinal.
É sinal que se conhecem. Um primo em segundo grau é administrador de condomínio e disseram-me que ele era o melhor que há, porque a ele toda a gente paga. É graçola. Há muita coisa boa, que vem de trás e outras a fazer-se.
Foi discriminado na escola?
Nunca me senti discriminado pelos colegas. A discriminação não se faz a nível dos miúdos. Agora tive os que me disseram: "O meu pai não quer que eu brinque contigo, mas eu brinco na mesma".
Como reagia?
Sempre me dei bem comigo. Há 60 anos, ter um pai cigano e uma mãe não cigana, era difícil. Antes do meu pai casar com a minha mãe, ela foi ameaçada pelos meus tios. "Se casas com ele, a gente mata-te". Tentaram casar três vezes, mas havia um sacristão que ia dizer à família do meu pai. O padre casou-os em segredo às cinco ou seis da manhã. A minha mãe sempre quis que estudássemos.
E o seu pai?
Tinha abertura. Tive uma boa relação com ele. Eu ajudava nas feiras. Ia ao Norte comprar calçado.
Gostava de trabalhar nas feiras?
Não era uma paixão, mas ia ajudar. Arrumava o calçado. Mas nunca me tirou da escola para ir à feira.
Quando se sentiu mais discriminado?
Era espigadote, havia uma rixa entre famílias e surgiram ameaças sérias de pistola na mão e tiros nas paredes. Dirigi-me à PSP a pedir apoio. Disseram: "Vocês são ciganos que se matem uns aos outros". Um ato puro de discriminação.
Como reagiu?
Fiquei com uma ira enorme e fui ter com os meus.
Ao longo do percurso político não achou que outros foram favorecidos por serem de boas famílias?
Não senti. Fiz Direito, sei os meus direitos. E sempre me educaram para ser duas vezes melhor para ser igual aos outros.
Isso requer um esforço maior.
Quer dizer que temos de trabalhar muito para lá chegar. Como advogado, nunca tive menos trabalho. Agora, em termos políticos, num primeiro momento, foi difícil.
Foi difícil?
Foi. Em Torres, o PS ganhou sempre. Fui presidente da Assembleia Municipal. E quando o cabeça de lista à Câmara me convidou para ser número dois, mas já numa lógica de substituição, levantou-se uma fação por eu ser o segundo.
Por ser cigano?
Nos jornais, era por uma questão ética e não étnica. Argumentava-se dentro do Partido Socialista que eu, enquanto advogado, tinha tido processos em que defendia homicidas, etc. Por isso não devia ir para a Câmara Municipal. O que é ridículo. Mas, por trás disso tudo, estava uma razão étnica.
Aí sentiu a discriminação?
Senti. Aquilo que se discutia era se ganhávamos com uma maioria absoluta ou simples, vínhamos de uma maioria e, às tantas, íamos perdendo a Câmara. Ganhamos por 70 votos. A primeira reação foi ir ter com o meu amigo e colega, cabeça de lista, e dizer-lhe: "Vou-me embora e volto para o meu trabalhinho". Ele não quis. Custou muito, até porque eu tinha um passado lá dentro, muito trabalho.
O que aconteceu?
As pessoas ficaram com uma expectativa baixíssima a meu respeito. De modo que, quando passo a presidente e começam a conhecer-me - porque estava todos os dias no terreno, com as pessoas e a fazer coisas -, percebem que trabalho. Por isso, passamos de uma vitória por 70 votos para uma vitória de 3000 ou 5000, com maioria absoluta no mandato a seguir.