A separação física forçada pelas medidas de segurança sanitária motivadas pela covid-19 alterou o ritual das cidades. Ganhou o medo, perderam-se dinâmicas de sempre. As marcas são evidentes na via pública e não deixam dúvidas. Futuro pode trazer alterações de padrões de comportamento.<br/> .
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São marcas a que não podemos fugir de tão evidentes. Estão por todo o lado e estabelecem a distância de segurança que devemos manter em relação ao próximo para evitar a propagação de uma pandemia que veio alterar hábitos, rotinas e comportamentos.
Nas cidades, das mais pequenas às metrópoles, as linhas de demarcação estão traduzidas em avisos explícitos que povoam espaços interiores, como estabelecimentos comerciais ou escolas, e áreas públicas, como jardins e parques. Como consequência, a distância tomou conta dos meios urbanos. Obrigatória, assim manda a covid-19, a doença que corrói os dias e estraga quotidianos.
"O distanciamento cívico tem impactos claros no modo como nos relacionamos com o outro", resume a socióloga Maria João Valente Rosa, professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
A pandemia cultivou a necessidade do afastamento físico e acelerou, até, processos de mudança de vivência nas cidades
Os resultados práticos deste afastamento forçado traçado a linhas cravadas no chão pisado por milhões nas cidades começaram rapidamente a fazer-se sentir. E alterou dinâmicas que antes pareciam tomar um caminho lento. "Não tem sido fácil", admite Rio Fernandes, professor catedrático do Departamento de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. "A pandemia cultivou a necessidade do afastamento físico e acelerou, até, processos de mudança de vivência nas cidades, como o uso mais frequente de meios de transporte verdes, como a bicicleta, e a procura de espaços públicos menos frequentados, de modo a proporcionar a necessária procura da sensação de segurança", explica.
Tamanhas alterações súbitas no modo de vivência das cidades levaram a mudanças de comportamentos, umas mais evidentes do que outras. A pandemia trouxe com ela adaptações significativas no modo de viver e de conviver nos meios urbanos. "É curioso como as cidades se transformam, à conta de todas estas mudanças de comportamento, em algo diferente em tão pouco tempo. Ficou reforçado o chamado urbanismo tático. Ou seja, o uso temporal do espaço público por si só", assinala Rio Fernandes. Que exemplifica este novo conceito com a decisão tomada por vários municípios de encerrar ou limitar o trânsito automóvel em diversas ruas, abrindo-as à circulação pedonal e convidando a população a usufruir de locais abertos com total segurança física, como esplanadas. Tal medida foi levada a cabo, por exemplo, em Lisboa, que fechou artérias na Zona Histórica, e no Porto e em Aveiro, onde ruas há em que aos fins de semana os carros foram proibidos para privilegiar os peões. Sempre com delimitações bem assinaladas na via pública, de forma a facilitar a manutenção das devidas distâncias de segurança.
As cidades são espaços de grande proximidade física. Essa proximidade esbateu-se com a questão da pandemia e o medo tem alimentado a distância
A nível sociológico e comportamental, as mudanças começam a manifestar-se. Umas mais evidentes do que outras. "Há um medo que começamos a sentir em relação ao outro nas cidades", considera Maria João Valente Rosa. Algo que pode ser considerado quase natural quando somos invadidos por centenas ou milhares de avisos públicos que apelam à nossa precaução obrigatória como forma de prevenir o combate a um inimigo invisível que domina os rituais. "As cidades são espaços de grande proximidade física. Essa proximidade esbateu-se com a questão da pandemia e o medo tem alimentado a distância e levado a um fechamento em relação a nós próprios e, também, em relação ao conceito do que é a cidade", entende a socióloga da Universidade Nova de Lisboa. "A cidade evoluiu ao contrário", define.
Desafio é perceber se todas estas alterações que as cidades têm vivenciado ficarão depois de a pandemia desaparecer e os dias retomarem a normalidade. Algo que nem os cientistas se atrevem a adivinhar, tantas e tamanhas foram as mudanças que a doença trouxe.
Reconfigurar a forma de viver na cidade
"O provável é que o futuro traga consigo a valorização da proximidade de serviços, como o comércio, e do digital. As lógicas de acessibilidade poderão alterar-se, ou seja, a valorização da ideia de ter acesso a algo sem ter de me deslocar ou de fazer curtas distâncias", antecipa Rio Fernandes. Maria João Valente Rosa também recusa fazer previsões definitivas, embora considere certo que "a forma de viver a cidade venha a ser reconfigurada".
Uma coisa é certa, as cidades mudaram e mudou a forma como as pessoas nelas se movimentam. As marcas de distância a que nos habituámos são apenas das provas mais evidentes disso mesmo.