Síndrome de Tourette: o duelo entre o cérebro e o corpo que vai muito além de gestos obscenos
Para mostrar que a síndrome de Tourette não se resume a gestos obscenos e palavrões, Gisela Santos fundou uma associação, inspirada pelo exemplo do filho Afonso, com o objetivo de ajudar famílias a perceber a batalha entre o cérebro e o corpo. Hoje assinala-se o dia europeu da condição neuropsiquiátrica.
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Perturbação obsessivo-compulsiva (POC), hiperatividade com défice de atenção e síndrome de Tourette. Há uma década que Afonso Santos descobriu que estas três condições psiquiátricas fazem parte da sua vida. O bracarense de 17 anos integra o universo de 1% de jovens com tiques que se manifestam por via de movimentos e sons repetitivos, uma condição rara e crónica que ainda exige um longo caminho de empatia e sensibilização.
O diagnóstico não foi imediato. Exigiu uma busca complexa e demorada e forçou a mãe, formada em Ciências da Comunicação, a mergulhar no mundo da psiquiatria para entender o filho, que desde cedo se mostrou um "menino diferente". Com uma capacidade de aprendizagem acima da média, até porque também é sobredotado, o atual finalista do Ensino Secundário entrou para a escola primária já a saber ler e destacou-se rapidamente entre os colegas de turma. E se até ali já tinham surgido alguns sinais da POC, com a paixão por dinossauros, foi na sala de aula que se manifestaram os primeiros sintomas da síndrome de Tourette. "A professora apercebeu-se de que ele revirava os olhos e fazia um balanço para trás com a cabeça, mas nunca associou a tiques. Nós em casa nunca tínhamos reparado que ele os fazia", recorda Gisela Santos.
A partir daí, a situação começou a escalar. "No final do 1.º período, a caderneta já não tinha mais espaço para os recados da professora", indica a mãe, que lidou com as críticas de que o filho "não parava quieto, fazia barulho e incomodava os colegas". Depois do Natal, Afonso começou a piorar e foram agendadas reuniões com o coordenador pedagógico e com a psicóloga da escola. O próximo passo foi pedir à médica de família que referenciasse a criança para a pedopsiquiatria. Com a consulta agendada para dali a 10 meses, a mãe procurou ajuda no privado e ao final de três sessões descobriu que o filho tinha síndrome de Tourette. "Para ver o meu ponto de literacia, a minha reação foi: não, o meu filho não pode ter síndrome de Tourette porque ele não diz palavrões", lembra Gisela.
Só 5% fazem gestos obscenos
Ao JN, Vasco Conceição, investigador no Gulbenkian Institute for Molecular Medicine, em Lisboa, esclarece que só 5% dos portadores da síndrome têm tiques que envolvem a repetição de palavrões ou de gestos obscenos. E cerca de 90% apresentam pelo menos mais uma perturbação psiquiátrica. "Para uma pessoa ser diagnosticada com síndrome de Tourette é preciso manifestar pelo menos dois tiques motores distintos e pelo menos um tique fónico durante um período de pelo menos um ano, até aos 18 anos. Os tiques podem ser muito variáveis, em severidade, frequência e complexidade", explica o doutorado em neurociências. "Pela altura do diagnóstico, o Afonso tinha um tique que era pôr os dois joelhos no chão e bater com o nariz no chão. Com os tiques mesmo muito exacerbados, a médica disse que ele teria de fazer medicação", constata a mãe.
Vasco Conceição frisa que os tiques - característica base da síndrome de Tourette - podem variar ao longo do tempo e respondem a uma sensação de stress, confusão ou desconforto que tende a cessar com a execução dos movimentos. "Alguns tiques têm um caráter semivoluntário porque os doentes conseguem inibi-los durante algum tempo, mas têm inevitavelmente de os realizar", justifica. Através da medicação e, mais tarde, da terapia cognitivo-comportamental, Afonso conseguiu controlar os sintomas e hoje, com 17 anos, encara a sua condição com tranquilidade. Encontrou no desporto - pratica jiu-jistu e futsal - a chave para relaxar e amenizar as sensações de desconforto. "É bom arranjar técnicas para não sentir tanto stress e frustração porque ajuda a aliviar os tiques. Além disso, também é muito importante ter ao nosso redor pessoas que compreendam, que sejam simpáticas e que não julguem. Assim, as pessoas com síndrome de Tourette conseguem ficar mais confortáveis e agir com naturalidade", considera o jovem.
Quer ser psicólogo para ajudar os outros
Para ajudar as famílias a lidar com a patologia, a mãe de Afonso Santos fundou a Associação Portuguesa de Síndrome de Tourette (APST), em dezembro de 2017, e desde então trabalha na sensibilização, que continua a ser uma prioridade. "Não podemos amar e compreender aquilo que não nos é ensinado. Daí que o meu foco, enquanto presidente da associação, é a sensibilização. Com os pais, nas escolas e instituições públicas. É aí que queremos trabalhar", garante Gisela.
A presidente da APST lamenta que haja ainda muito desconhecimento e preconceito em relação à síndrome de Tourette e assegura que os desafios começam no diagnóstico. "A síndrome ainda é muito desconhecida. O médico é capaz de dar um diagnóstico para outras comorbilidades, mas o Tourette não aparece como uma patologia, mas como uma manifestação", explica, apontando as longas filas de espera nos hospitais públicos como outro entrave. Segundo a bracarense, a identificação tardia da condição deixa os doentes "expostos a cenários muito desagradáveis porque os jovens e adultos sentem-se mal compreendidos e entram, muitas vezes, em estados associados à depressão".
Apesar de ser uma doença crónica e sem cura, Afonso Santos aprendeu a lidar com a sua condição. A poucos meses de ingressar no Ensino Superior, o jovem de 17 anos revela que quer estudar Psicologia Clínica, inspirado pela própria história de vida. "Entendo que os psicólogos tenham um trabalho difícil, mas quando ajudam uma pessoa a compreender que existem maneiras de superar as dificuldades, é das melhores coisas que há. Um psicólogo pode mudar a vida de uma pessoa sem que ela se aperceba dos efeitos imediatos", legitima.
O que deve saber sobre a Tourette
Diagnóstico feito por um neuropsiquiatra
Um doente com síndrome de Tourette tem de ter pelo menos dois tiques motores e um tique fónico durante pelo menos um ano, até aos 18 anos.
Incidência é superior nos rapazes
Os tiques manifestam-se em 1% dos jovens. Num terço dos casos, transitam para a vida adulta. A incidência é superior no sexo masculino, num rácio de três/quatro rapazes para uma rapariga.
Mais comorbilidades associadas
Cerca de 90% dos pacientes têm pelo menos mais uma perturbação psiquiátrica. Quase 60% têm hiperatividade com défice de atenção.
Tiques involuntários a semivoluntários
Os tiques não desejados surgem devido a uma sensação de desconforto. Alguns podem ser inibidos, mas acabam inevitavelmente por ocorrer.
Severidade, frequência e complexidade
Os tiques variam no tempo e podem ir de um simples piscar de olhos até ao movimento agressivo de um grupo muscular.
Não tem cura, mashá tratamentos
A doença crónica pode ser tratada através de medicação, terapia comportamental e, nos casos mais graves, de estimulação cerebral profunda.