Aumentar os requisitos de transparência, nomeadamente sobre quem são os proprietários dos órgãos de comunicação social e os apoios que recebem, é uma das discussões em cima da mesa a propósito da nova Lei Europeia da Liberdade dos Meios de Comunicação Social. Outra grande preocupação são os sites de notícias falsas.
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Hugo Gilberto, diretor-adjunto de informação da RTP alertou, esta sexta-feira, que há mais de 3 milhões de pessoas a subscreverem sites portugueses que tornam virais publicações de fake news nas redes sociais, um valor próximo do somatório do “pico” das audiências televisivas durante o horário nobre.
Numa iniciativa sobre os desafios para Portugal no quadro da nova proposta legislativa da Comissão Europeia sobre a liberdade dos meios de comunicação social - promovida pelo eurodeputado do PS João Albuquerque, que decorreu na Universidade de Aveiro -, o jornalista defendeu que é necessário criar meios legais para identificar a propriedade de todos os sites, para separar o que é jornalismo do que é desinformação. "Ninguém sabe de quem são. São dezenas e dezenas de publicações que ganham lastro nas redes sociais e são uma fonte de negócio rentável devido à publicidade”, apontou no primeiro painel da iniciativa.
Hugo Gilberto sugeriu, por isso, que seja criado uma espécie de selo ou marca de água para identificar que estas publicações não cumprem o código deontológico da profissão. “Tem de ficar claro aos leitores e ouvintes que não é jornalismo”, resumiu.
No início deste mês, a Comissão de Cultura e Educação do Parlamento Europeu aprovou uma última posição sobre a Lei Europeia da Liberdade dos Meios de Comunicação Social (European Media Freedom Act, na designação original) com o objetivo de reforçar a proteção do jornalismo a interesses e pressões governamentais, políticas, económicas ou privadas. Entre o conjunto de regras para proteger o pluralismo e a independência dos media na União Europeia, a Comissão Europeia propõe que os meios de comunicação social dos 27 estados-membros cumpram requisitos de transparência, nomeadamente sobre quem são os seus proprietários e os apoios financeiros que recebem.
Acabar com "cobardia do anonimato"
Para o diretor-adjunto de informação da RTP, atualmente, o grande desafio à atividade dos meios de comunicação social “é o poder económico”, que permite, muitas vezes, que estes estejam nas mãos de “rostos desconhecidos”. Hugo Gilberto acredita que a nova norma pode ajudar a identificar “quem são efetivamente as pessoas e as empresas proprietárias”, algo que considerou ser “absolutamente essencial” para garantir um jornalismo independente e pluralista. “Têm de se encontrar medidas legais para acabar com a cobardia do anonimato”, advertiu, acrescentando que na UE, onde se vive num contexto de democracia, não é "desculpável" que o anonimato seja utilizado para a profanação de calunias e fake news.
“É importante que um cidadão que aceda a um site possa perceber se tem jornalistas e se pode ser considerado um site de informação”, acrescentou Alberto Arons de Carvalho, antigo secretário de Estado da Comunicação Social, sobre a necessidade de existir um registo dos detentores de meios de comunicação social. Apesar de considerar natural existir capital estrangeiro no setor dos media português, nomeadamente do Brasil e de outros países de língua portuguesa, o orador asseverou que se deve perceber se os acionistas pretendem ter uma intervenção apenas no espaço mediático ou se têm outros propósitos económicos.
Na ocasião, Licínia Girão, presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, identificou como preocupação a falta de pluralismo de meios de comunicação social de caráter local e regional. “Quase metade da população está deserta de notícias”, sublinhou a responsável, considerando, por isso, que o regulamento europeu se tornou “uma necessidade imperativa”.
Foi desse “deserto noticioso” que surgiu a "Mensagem de Lisboa", que nasceu em 2020. Frederico Raposo do jornal digital visou que “assegurar o pluralismo” no jornalismo local “é gritante”. Nesse seguimento, o jornalista lembrou que os meios de comunicação social locais que conseguem subsistir têm como fonte de financiamento as próprias autarquias.
Bolsas e financiamento público
Para reforçar a viabilidade económica dos meios de comunicação social europeus, a Comissão Europeia considera que os Estados devem financiar os meios de comunicação social do serviço público, com orçamentos plurianuais. Os participantes no debate alertaram que os media que não estão sob a alçada de nenhum grupo de comunicação social, considerados independentes, não veem, por isso, nenhuma resposta ao velho problema que enfrentam: a falta de financiamento.
O jornalista Nuno Viegas do Fumaça, projeto de jornalismo de investigação independente, salientou que o regulamento “não inclui jornalismo que é feito através de bolsas ou financiamento público”, lamentando que não tenham sido consideradas as sugestões dos meios de comunicação social independentes quando foram convidados pela Assembleia da República a contribuir para o parecer de Portugal em relação à proposta de lei.
Na altura sugeriram que fosse criado um instituto responsável pela atribuição de verbas públicas ao jornalismo, à semelhança do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), sob a tutela do ministério da Cultura, que financia a atividade do cinema e audiovisual em Portugal, exemplificou Sofia da Palma Rodrigues, editora-executiva da Divergente. Ainda assim, a jornalista da revista digital independente acredita que a norma pode ser “uma ponte” para a mudança.
“Tem de se olhar para o jornalismo como um bem público e existir um financiamento estrutural que permita aos jornalistas trabalharem com dignidade e com tempo”, advertiu Frederico Raposo. Os jornalistas destes três meios independentes alertaram para o facto de que muitas das bolsas que são atribuídas para investigações e outros trabalhos jornalísticos em Portugal limitam os meios de comunicação social a abordar um determinado tema. E que muitas vezes são financiadas por empresas ligadas a essa mesma área. Os três meios emergentes sem fins lucrativos, e livres de publicidade, subsistem maioritariamente de financiamento estrangeiro, bem como de contribuições dos seus leitores e membros.
A Comissão Europeia quer ainda criar um Comité Europeu dos Serviços de Comunicação Social composto por representantes dos reguladores nacionais de cada estado-membro para questões de regulação e emitir pareceres sobre medidas nacionais que possam afetar os mercados dos meios de comunicação social. O novo órgão independente substituirá o atual Grupo de Reguladores Europeus. Uma proposta que Licínia Girão admitiu ver “com bons olhos”, dado que há “alguns países que não têm a atividade regulamentada”.
A votação do texto final da Lei Europeia da Liberdade dos Meios de Comunicação Social - apresentada em outubro de 2022 -, no Parlamento Europeu está agendada para o início de outubro. Depois do veredicto, os eurodeputados vão começar a negociar com os estados-membros a forma final da lei até ao final deste ano.