No ano passado, 5354 pessoas prestaram serviço na comunidade após uma condenação em tribunal. Regras das entidades beneficiárias não se adequam às necessidades, revela o sindicato dos técnicos de reinserção social.
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Nos Bombeiros Voluntários de Coimbrões, em Gaia, é habitual haver pessoas a prestar trabalho comunitário na corporação, seja para substituir uma pena de prisão até dois anos ou uma pena de multa. “Talvez por estarmos perto do tribunal, recebemos muitas solicitações”, conta o comandante Luís Araújo. No ano passado, 5354 pessoas fizeram prestação de trabalho a favor da comunidade em todo o país. A execução de penas em trabalho comunitário tem vindo a diminuir, segundo os Relatórios Anuais de Segurança Interna (RASI). Entre 2018 e 2024, o cumprimento desta medida desceu 62%.
Nuno Matos, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), considera que a opção pelo trabalho comunitário depende, muitas vezes, “da sensibilidade de cada juiz”. “Há penas substitutivas que se sobrepõem e há penas suspensas, com determinadas condições, que vão ter o mesmo efeito do que a prestação de trabalho na comunidade”, explica. O juiz dá o exemplo da suspensão da execução da pena de prisão com regime de prova, em que o condenado não vai preso, mas pode ser obrigado a frequentar formações ou ser instruído a adquirir “hábitos de trabalho”.
Combate à reincidência
O secretário-geral da Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR) considera que o trabalho comunitário “devia ser incentivado” dada a sobrelotação nas cadeias. “Uma pessoa reincidente na condução sem habilitação legal vai para a cadeia durante meses ou um ano. Sai da cadeia sem carta de condução. Podia ser condenado a fazer trabalho comunitário e não terminava enquanto não tirasse a carta”, defende Vítor Ilharco. Os crimes rodoviários, como a condução sem habilitação legal e a condução sob o efeito de álcool, são os mais frequentes nas condenações a trabalho comunitário.
O Governo da Aliança Democrática inscreveu no programa do Executivo, apresentado em abril de 2024, a intenção de reforçar o trabalho a favor da comunidade como uma alternativa à prisão.
Embora o presidente da ASJP considere que não há falta de entidades beneficiárias para receber trabalho comunitário, Miguel Gonçalves, presidente do Sindicato dos Técnicos da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, admite haver instituições “que não colaboram” e que têm “regras que não se adequam às necessidades das pessoas condenadas”. A sobrecarga de trabalho dos técnicos de reinserção social não tem ajudado a consolidar a prestação de trabalho a favor da comunidade como uma pena eficaz.
A Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais não respondeu em tempo útil ao JN sobre o número de entidades beneficiárias de trabalho comunitário. Para Vítor Ilharco, condenar alguém a trabalhar para a comunidade, na área onde reside, representa “um combate fortíssimo à reincidência”.
Intervenção do Estado devia ser à priori na segurança rodoviária
O jurista João Clemente defende que a segurança e a educação rodoviária são temas a que o Estado tem de intervir “à priori”. Interessado em mobilidade, o jurista considera que antes de se refletir sobre as condenações de crimes rodoviários – em que o trabalho comunitário é frequentemente aplicado, tal como as penas suspensas – deviam ser incentivadas “medidas de acalmia no tráfego” e uma “visão de mobilidade” nas cidades, dada a circulação de vários tipos de veículos e de utilizadores. Uma das medidas mais defendidas tem sido a implementação do limite de 30 km/h nas zonas urbanas. De acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2024, os crimes rodoviários baixaram 24%.
O que é trabalho comunitário?
A prestação de trabalho a favor da comunidade consiste numa pena de substituição da prisão até dois anos e tem de ter a concordância do arguido/condenado. São serviços gratuitos prestados a entidades públicas ou privadas, cujos fins sejam de interesse público. O trabalho comunitário pode ser aplicado se o arguido não tiver dinheiro para pagar uma pena de multa.
Em que dias é realizado?
De acordo com o Código Penal, o trabalho comunitário pode ser prestado nos dias úteis, ao sábado, ao domingo e aos feriados. Os períodos de trabalho comunitário não podem prejudicar a jornada de trabalho de quem possui um emprego. O limite máximo é de 480 horas, no total.
Todo o tipo de crimes pode ser sujeito a trabalho comunitário?
Não. O trabalho comunitário só é aplicado consoante o grau de gravidade do crime praticado. Por essa razão, só é aplicado como substituição de penas de prisão até dois anos. Os crimes rodoviários, como a condução sob efeito do álcool ou sem habilitação legal, são os mais frequentes em medidas de prestação de trabalho a favor da comunidade.
A idade do arguido é tida em conta?
Sim. O Código Penal prevê que, “em razão da idade do condenado”, o tribunal pode considerar que o trabalho comunitário é adequado e suficiente como punição pelo crime cometido. O juiz Nuno Matos esclarece que é geralmente aplicável a jovens para adquirirem “hábitos de trabalho”.
Quem decide o local do trabalho comunitário?
A avaliação é feita pelos serviços de reinserção social, que escolhem a entidade beneficiária consoante a disponibilidade da instituição e o perfil do condenado.