Há rapazes em tratamento hormonal a quem está a ser dada a vacina da Janssen que não é aconselhada a mulheres abaixo dos 50 anos. Norma da DGS é omissa na matéria.
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A comunidade de pessoas transgénero está apreensiva com o momento da vacinação e aponta a falta de informações por parte das entidades competentes sobre qual a vacina mais adequada.
Recorde-se que a vacina da Janssen não é aconselhada a mulheres abaixo dos 50 anos, mas tem estado a ser administrada a jovens transgénero.
Brian Campos tem 23 anos e é uma pessoa trans. Está em tratamento hormonal há cerca de quatro anos e, a cada três semanas, faz injeções de testosterona. Na manhã do dia da convocatória para a vacina, falou com o seu cirurgião para saber qual a opinião do médico sobre a mais indicada para ele.
"Já estava à espera que o centro de saúde não estivesse a pensar no meu caso", disse ao JN, revelando que nestas situações vê-se obrigado a ir "duplamente informado". Apesar de ainda não existirem estudos "a fundo" sobre os riscos da Janssen em pessoas trans, o médico recomendou-o que pedisse outra vacina.
No centro de vacinação do Seixal, Brian Campos informou o voluntário com quem teve o primeiro contacto que a Janssen não era recomendada para si e foi encaminhado para a enfermeira responsável. O jovem revela que a enfermeira "estava a tentar perceber a situação, mas não sabia a terminologia adequada para lidar com o caso".
A primeira justificação da profissional de saúde foi que o cartão de cidadão do jovem mencionava sexo masculino, com o nome Brian. "Vai levar a Johnson, porque é o que está no protocolo", ter-lhe-á dito. Brian Campos ripostou, explicando que "o sexo atribuído à nascença foi feminino e aquela vacina não era recomendada no seu caso". "É uma menina, não tinha percebido, temos aqui uma menina", terá dito a enfermeira, deixando-o desconfortável.
"Não, não temos aqui uma menina", pensou, mas teve medo de confundir a enfermeira e "arriscar a vacinação". Acompanhado pela mãe, o jovem mostrou o dossiê com o "relatório clínico, com o nome atualizado, o cartão de cidadão. Era mais do que suficiente para provar e estava assinado pela equipa (médica) de Coimbra". A enfermeira ainda lhe perguntou se não tinha nada "com o nome antigo", ao que o jovem lhe explicou que o número de cartão de cidadão não é alterado. Brian, que acabou por ser vacinado com a Moderna, nunca pensou que a vacinação "fosse um processo tão complicado". Mas diz que este é um "problema estrutural".
"ineficácia da DGS"
A situação foi relatada pelo jovem no Twitter, o que motivou contactos de outras pessoas transgénero com dúvidas. "Até o problema ser falado, ninguém estava a questioná-lo porque as pessoas pensavam que iam ao centro e a vacinação ia estar adequada à especificidade", disse ao JN.
João Rodrigues, um dos fundadores do projeto Anémona (criado com o intuito de ligar as pessoas LGBTI ao SNS) disse ao JN que receberam "mais relatos e preocupações semelhantes", atribuindo-o à "ineficácia da DGS e do Ministério da Saúde de colocar e incluir as pessoas trans e não binárias nas questões de saúde".
O projeto aconselha "a seguir a norma da DGS, que diz que mulheres abaixo de 50 anos não devem tomar esta vacina e devem escolher outras opções. No entanto, se quiserem, de forma consciente, informada e conhecendo, os riscos podem tomar à mesma". Recorde-se que em Portugal, desde 2018, é permitido que os jovens a partir dos 16 anos, através dos seus representantes legais, alterem o nome e o sexo no cartão de cidadão.
João Rodrigues considera que esta é uma "uma lacuna" na redação das normas da saúde. O JN questionou a Direção Geral de Saúde (DGS) sobre quais as orientações nestes casos, mas não obteve resposta em tempo útil.
Outros relatos
Isaac Costa, de 27 anos, já completou a vacinação com a Moderna. Apesar do inquérito que as pessoas respondem antes da vacinação não contar com nenhuma pergunta sobre a transição ou a toma de hormonas, Isaac Costa avisou o enfermeiro que estava a tomar testosterona a cada 28 dias. O enfermeiro informou que "não havia qualquer impedimento a nível hormonal com a vacina da Moderna", não existindo "nenhum efeito a debater com a testosterona". O jovem garante que conhece "pessoas trans que levaram a Johnson e ficaram muito mal". Foi o caso de Rodrigo Gonçalves, 30 anos, que recebeu a Johnson a 14 de julho. O jovem da Póvoa de Varzim refere que no dia da vacina teve os "efeitos normais". Mas, cinco dias depois, apareceram efeitos mais severos: ficou com "a cabeça toda inchada, toda aos papos" e com a "cara desfigurada".
Segundo Brian Campos, no seu círculo de amigos há várias pessoas trans com "medo de ir ao centro de vacinação pelo desconforto que iam sentir e serem confrontado com terminologia menos correta". Para Lourenço Ribeiro, a solução foi ser vacinado por duas amigas enfermeiras com a Pfizer. O rapaz trans já alterou os dados do seu cartão de cidadão, apesar de ainda não ter sido submetido a cirurgias, nem ter começado o tratamento hormonal. A única informação que tinha recebido sobre a vacina da Johnson foi das duas enfermeiras que lhe explicaram que essa vacina "estava a ser administrada a homens cis (cisgénero) e, como não tinha testosterona suficiente no seu organismo, não poderia tomar a Jonhson". O medo de Lourenço era que os profissionais de saúde lhe atribuíssem a vacina apenas olhando à informação do cartão de cidadão.
Rodrigo Santos, de 23 anos, faz tratamento hormonal a cada três semanas. No dia 21 de julho foi vacinado com a Johnson. Nunca tinha sido alertado sobre possíveis riscos da vacina. No inquérito do centro de vacinação, informou sobre a bronquite asmática e assinalou afirmativamente à questão sobre "se tinha tomado vacina há menos de duas semanas". Rodrigo Santos refere que quando se dirigiu para o gabinete para a inoculação, não lhe "disseram nada" sobre o inquérito. Informou o profissional de saúde, que é um rapaz trans, que faz testosterona e perguntou se "havia algum problema". Garantiram-lhe não haver qualquer problema e também não teve efeitos secundários, além de dores no braço.
João Rodrigues, do projeto Anémona, defende que a solução não passa por acrescentar uma pergunta no inquérito realizado às pessoas no momento de vacinação. O jovem defende que "a norma devia estar feita de forma a que não tenha de ser a própria pessoa a certificar-se que a sua saúde está em risco. E não pode pôr na balança ou a sua identidade, ou a sua saúde. Se a pessoa quiser reservar a sua privacidade, tem todo o direito de o fazer". João Rodrigues explica que a DGS tal como faz a "triagem à priori, devia fazer uma triagem a estas pessoas, sem que tenham de ser elas a assumir a sua identidade". João Rodrigues revela que quando são contactados com dúvidas, aconselham a pedir ao médico que está a seguir a transição um relatório que diga que há outras vacinas preferenciais à Johnson. Mas o jovem diz "isto não é a solução, é um penso rápido".