Um afeto que chega na ponta do nariz: palhaços nos hospitais espalham sorrisos pelos mais velhos
Não estão habituados a ser o centro das atenções, mas são o propósito maior da Palhaços d’Opital. Em seis hospitais do país, os doentes idosos recebem mimo de artistas de nariz vermelho que se dedicam a amenizar a dor através da música, do humor e da alegria. Um projeto com 11 anos que quer continuar a crescer.
Corpo do artigo
Não estão habituados a ser o centro das atenções, mas são o propósito maior da Palhaços d’Opital. Em seis hospitais do país, os doentes idosos recebem mimo de artistas de nariz vermelho que se dedicam a amenizar a dor através da música, do humor e da alegria. Um projeto com mais de uma década que já é uma referência na humanização dos cuidados hospitalares e que quer continuar a crescer.
“Bom dia, minha querida! Ai, está tão bonita”, exclama a Doutora Bem-Haja, mal irrompe pelo quarto 202 do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Coimbra, que há cinco dias acolhe Arminda Carapeto. “Bom dia, meu amor. Sempre fui bonita, agora com a velhice é que pronto”, responde a idosa de 75 anos, natural de Meãs do Campo, Montemor-o-Velho, a recuperar de uma mastectomia que fez para remover um tumor. Chorou “um bocadinho” quando viu o vazio que a cirurgia lhe deixou no lugar da mama, mas a fé em Deus, o amor da família e as chamadas das amigas ajudam a diluir a dor. Assim como a visita da Palhaços d’Opital, que todas as terças-feiras espalha sorrisos pelo IPO de Coimbra.
O nariz vermelho de Donizete Chiclete junta-se à parelha e começa a atuação, nesta época do ano dedicada ao Natal. Sentada na cama, com uma capa cor-de-rosa pelos ombros, Arminda escuta a canção “Tocar Magia”, interpretada pelas “doutoras” formadas em Teatro e Educação que integram a equipa de oito palhaços da associação. Segue-as com o olhar, carregado de ternura, e aplaude no fim. “Gostei muito. Foi importante esta visita para mim. Na minha tristeza, chegou um bocadinho de alegria”, partilha a idosa, após encher as artistas de beijos e abraços. “É uma das coisas boas de trabalhar com as pessoas mais velhas. Elas podem receber alguma coisa, mas dão-nos sempre em dobro”, constata Beatriz Melo, jovem de 30 anos que dá vida à Doutora Bem-Haja.
Quando entrou no projeto, há cinco anos e meio, a conimbricense ouviu que “por ser uma pessoa sensível, provavelmente não iria lidar bem” com o facto de trabalhar num hospital, onde as notícias podem ser dilacerantes, mas a experiência e a presença de outro colega durante as intervenções ajudaram-na a ultrapassar o desafio. “É tentar sempre focar no momento positivo, e não na doença da pessoa, para criar boas memórias”, revela.
Antes de se despedirem do internamento, desejam um “feliz Natal” a Dulce Helena, a enfermeira que gere o serviço. É com ela que falam sempre que chegam, para saber em que quartos podem entrar e qual é o estado clínico e anímico dos pacientes. Há mais de três décadas a cuidar de doentes oncológicos, a profissional de saúde não tem dúvidas de que o afeto é um poderoso aliado no tratamento. “As palavras de conforto, o abraço, o colocar a mão, fazem toda a diferença. Não é só a técnica, mas também esse carinho que os profissionais e, neste caso, os nossos palhaços, lhes dão”, afiança. “É importante. É uma amenização para a dor e sofrimento que alguns doentes sentem. As pessoas vêm sempre com alguma tensão, com alguma desconfiança para um IPO”, corrobora Bárbara Fernandes, médica responsável pelo serviço de Dermatologia, surpreendido durante a manhã pela alegria das palhaças.
Exigência e qualidade dos palhaços
De volta aos corredores do IPO, Donizete e Bem-Haja não passam despercebidas: saias e meias de cores garridas, narizes e batas vermelhas, adereços natalícios no topo da cabeça e uma mini-pandeireta. Nem deixam ninguém indiferente. Os trajetos entre os edifícios são feitos devagar, com tempo para cumprimentar todos, desde utentes a auxiliares, médicos a bombeiros. A aparente descontração e leveza com que interpelam quem passa é estudada de antemão, com exercícios de aquecimento vocal e corporal e de conexão, antes de entrar ao trabalho. É tudo pensado ao pormenor: 10% improviso, 90% preparação. Cada dinâmica é construída e ensaiada durante meses antes de ir para o terreno, sob a batuta do diretor artístico, Jorge Rosado, e, todos os anos, os artistas profissionais têm 250 horas de formação. Às quartas-feiras há aulas de canto e ukulele na Academia de Música de Coimbra, durante a manhã, e ensaios na recém-inaugurada sede, durante a tarde.
Um “grau de exigência e profissionalismo” necessário para sustentar um trabalho de confiança, desenvolvido há mais de uma década. “Todos os artistas são remunerados. A exigência que nós temos com a qualidade do trabalho que apresentamos é aquilo que nos define, em que apostamos muito, porque vamos para situações muito complexas onde as pessoas estão muito fragilizadas”, justifica Isabel Rosado, cofundadora da Palhaços d’Opital.
Na lotada sala de espera do Hospital de Dia, a maioria dos utentes está em silêncio, apesar do ruído constante dos megafones a anunciar a próxima chamada. Ter uma consulta no IPO pode ser desolador; lidar com um “monstro” invisível, tantas vezes associado ao pior. Quando o colorido duo entra na sala, os pescoços viram-se para ver o que se passa. Os rostos apreensivos iluminam-se, os telefones gravam a atuação, há gargalhadas. “Isso é playback”, brinca uma utente. “Muito bem, são muito lindas”, atira outra. A tensão desfaz-se com a presença de Donizete e de Bem-Haja.
“Nós chegarmos, faz com que as pessoas sejam transportadas para outros mundos”, explica Beatriz Melo. “Mas nem sempre conseguimos fazer rir, às vezes não é o mais importante. É estar lá para a pessoa e ter essa sensibilidade de perceber o que é importante para ela, naquele momento, mas sempre focar no lado positivo”, completa Susana Gonçalves, que interpreta a personagem de Donizete Chiclete há mais de oito anos.
Trazer “os velhinhos” para o centro da ação
Desde 2013 que a Palhaços d’Opital está presente, durante todo o ano, nos hospitais públicos do país. O projeto começou em Aveiro e na Figueira da Foz e, atualmente, atua em seis unidades: no São João, em Matosinhos, no IPO de Coimbra, em Leiria, no Amadora-Sintra e no Santa Maria. A premissa de colocar os “velhinhos no centro da mesa” partiu de um sonho de Jorge Rosado, o Doutor Risotto, que depois de estar associado a outros projetos, nomeadamente com crianças, sentiu que devia ir mais além.
Apaixonou-se e fundou a associação pioneira na Europa que direciona o trabalho do palhaço na área hospitalar para um público adulto, em especial para os mais velhos, que mais sofrem de abandono hospitalar e que têm taxas de internamento mais prolongadas. “Este público de pessoas mais velhas são muito discriminados. Sinto que a sociedade começa a estar atenta, e as grandes marcas começam a olhar, mas o que é certo é que, na prática, ainda é um problema grave”, considera.
“Decidimos que estava na hora de contribuirmos para uma mudança na sociedade, contribuir para a valorização e dignificação da pessoa mais velha. Que somos nós, os velhos de amanhã”, complementa Isabel Rosado, presidente da Palhaços d’Opital, que, tal como Jorge Rosado, traz uma bagagem cheia de memórias dos milhares de doentes com quem já se cruzou. O mais marcante foi perceber que há idosos que consideram normal serem desprezados e abandonados, mas que têm uma gratidão desmesurada quando recebem carinho. “São pessoas de uma geração que foi ensinada a amar e a devolver, uma geração do dar e não do ter, então, cada vez me sinto mais encantado. Acho que o mundo é muito mais bonito quando colocamos os velhinhos no centro da mesa”, garante o diretor artístico.
Fundada em 2013, a Palhaços d’Opital viveu anos a saltitar de sede em sede. Depois de um “grito” de Jorge Rosado na rede social LinkedIn, a associação conseguiu finalmente uma casa, mergulhada na mata da Escola Agrária, cedida pelo Instituto Politécnico de Coimbra. “A onda acabou por ultrapassar todas as nossas expectativas com a publicação e teve mais de mil partilhas. Foi interessante sentirmos o calor da comunidade, sentirmos que não estávamos sozinhos e que havia tanta gente disponível para ajudar. Houve pessoas a oferecer casas particulares, por exemplo”, descreve a presidente, Isabel Rosado.
Rodeada pela natureza e a poucos minutos do centro de Coimbra, a recém-inaugurada sede da Palhaços d’Opital conta com várias salas, onde os artistas ensaiam todas as quarta-feiras, escritório e zona de convívio. No piso superior, nas águas furtadas, as paredes estão decoradas com ilustrações de palhaços, oferecidos por uma técnica auxiliar do Hospital de Aveiro, caricaturas dos padrinhos Ruy de Carvalho e Paula de Carvalho e outras memórias. O envolvimento de figuras públicas foi importante para afirmar a notoriedade, no início do projeto, e abriu “muitas portas”, mas a falta de financiamento continua a ser um desafio que obriga a uma ginástica complexa durante todo o ano. “Não conseguimos estar ainda em todos os hospitais que já manifestaram vontade de ter o programa. A parte financeira tem que estar assegurada primeiro”.
É graças a grandes marcas, como a Delta Cafés ou a Fundação Ageas, que patrocinam a presença nos hospitais, a donativos e a campanhas que vão construindo o futuro de uma associação onde todos os profissionais são remunerados. Não há voluntários devido à complexidade das intervenções. Durante três anos contaram com fundos do Portugal Inovação Social, que lhes “possibilitou crescer bastante”, e aguardam agora o resultado de outras candidaturas, uma delas ao Norte 2030, conseguido com o apoio da Câmara Municipal de Matosinhos.