Brasileiros, angolanos, ingleses e franceses - eis os migrantes das comunidades mais representativas em Portugal, segundo o Censos 2021. Fomos saber como são as consoadas de famílias estrangeiras a residir em vários locais do Norte e descobrimos um mundo de sabores.
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Apesar de o bacalhau estar à mesa de alguns, são privilegiadas as tradições gastronómicas de cada país. E encontramos foie gras, funje, um bolo preparado com um ano de antecedência, peru estufado e churrasco. Diferenças à mesa com o mesmo espírito: é Natal.
Ostras e foie gras são obrigatórios na mesa de Charlotte e Manuel
Ao fim de 40 anos emigrado em França, Manuel Pereira, 59 anos, voltou de vez às origens e trouxe consigo a namorada, Charlotte Piechota, natural de Paris. Chegaram a 8 de abril a Amares, onde têm uma moradia, e a noite da consoada, este ano, foi passada com a família do ex-emigrante, que não dispensa o bacalhau. O casal aprova a tradição, mas lamenta que ninguém os acompanhe nas ostras, foie gras ou até no salmão fumado, que são "obrigatórios" na mesa dos franceses.
"Quando estamos com a família, não impomos os nossos gostos. Depois, quando ficamos sozinhos, no dia seguinte à consoada, por exemplo, comemos estas coisas", conta Manuel Pereira, apontando para as iguarias que imperam no Natal do país onde esteve emigrado e que diz "preferir" em relação às portuguesas.
"Foram muitos anos fora, ganhei os gostos franceses", justifica o também empresário, sublinhando que "as entradas são o mais relevante" da refeição.
O casal fala de ostras, foie gras, salmão fumado com limão e manteiga salgada, mas também compotas e, "para quem pode, tem de haver um pouco de caviar". O peru é servido como prato principal e, antes das doçarias, deve haver queijos para misturar com salada.
"Um jantar ou almoço de Natal na França fica muito caro. O quilo do caviar começa nos cinco mil euros", refere Manuel Pereira, lembrando que a mesa não fica completa sem vinho e champanhe.
Charlotte Piechota ressalva que até prefere o bacalhau ao peru e, em Portugal, só não gosta mesmo da doçaria típica como pão de ló, bolo-rei ou rabanadas.
"Faço mousse de chocolate e um tronco de chocolate para levar", conta a francesa de 49 anos, acrescentando que, nesta época, também têm o hábito de cozinhar pataniscas de bacalhau.
Família de Sandra adora bacalhau mas não esquece o funje
Natal numa casa de angolanos é sinónimo de alegria. Come-se muito e dança-se muito, ao som, sobretudo, de música africana. Sandra Cardoso vive no Porto, mas nasceu em Benguela e diz que a mistura entre culturas é grande por estes dias e que, com o passar dos anos, as tradições portuguesas vão-se sobrepondo às angolanas. "Comemos bacalhau cozido e assado, rabanadas, sonhos, aletria, filhós, pão de ló, queijo da serra e vinho do Porto que não pode faltar", conta Sandra. A irmã é produtora daquele vinho na Régua e os natais vão-se alternando entre o Porto e aquela cidade duriense.
A cozinha angolana marca também presença, mais por pressão da mãe, com o peixe seco com funje, feito com farinha de mandioca, embora Sandra goste mais de o fazer com farinha de milho. "O peixe é demolhado e depois assado e servido com cebolada. É uma delícia", garante. Há ainda muamba e de doçaria africana vai à mesa o bolo de banana. Para beber é ainda servido kissangua, bebida feita artesanalmente pela mãe e que é obtida pela fermentação da farinha de milho. "É deliciosa, parece um sumo, mas a saber a álcool", explica Sandra.
"De resto, o Natal não difere muito nos dois países. Lá, por esta altura, há mais camarão". Sandra Cardoso é considerada pela família como boa doceira, mas também nos salgados não deixa os seus créditos por mãos alheias e, enquanto explica as tradições familiares, vai mudando a água ao bacalhau numa panela. Diz ter saudades dos natais de infância quando o pai ainda era vivo e todos os oito filhos do casal faziam uma verdadeira algazarra em casa.
Bolo preparado um ano antes na casa de Sharon, Hazel e Alex
Vieram para Portugal para trabalhar em diferentes orquestras e pensavam que seria temporário. Seria por cinco semanas, mas os meses e depois os anos foram passando. Sharon e Hazel vivem no Porto há mais de 30 anos. Tocam na Orquestra Sinfónica Casa da Música. Sharon toca violoncelo e Hazel viola d'arco. Todos os anos as famílias de ambas se juntam e reúnem também os amigos como Alex Bone, diretor do Inlingua Porto. Embora longe de casa as tradições britânica à mesa de Natal são para se manter.
"A primeira diferença é que o dia 24 não significa nada para nós. Em Inglaterra, tiramos um chocolate da árvore e as crianças vão para a cama cedo. E prepara-se a comida para o dia seguinte", conta Sharon Kinder. Na manhã do dia 25, a algazarra começa com as crianças a correr para abrir o que o Pai Natal deixou nas meias. "Bebemos champanhe e comemos crumpets, um tipo tostado com muita manteiga. Ou ovos estrelados com salmão", explica Hazel Veitch.
Este ano é Alex que prepara o manjar, "desta vez, essencialmente vegetariano". Mas também se come peru estufado, com recheio de pão e especiarias. E pão que molham num caldo feito com leite, cebola e cravinho. Mas são os doces os reis da mesa: o tronco de Natal de chocolate e o bolo de Natal que é feito um ano e dois meses antes, com frutos secos e embebido em brandy. "Na minha família fizemos em outubro, mas não comemos neste Natal. Vamos alimentando-o com brandy, vinho do Porto e só será comido para o ano", conta Hazel. O mesmo acontece com o pudim feito há vários meses, que vai para a mesa embebido em brandy e em chamas.
O dia acaba com muita animação até porque nas três famílias existem várias pessoas ligadas à música. Mas a festa continua a 26, dia do Boxing Day, comendo-se os restos da véspera.
Leitoa, churrasco e bacalhau são escolhas de Carlos e Giulianna
Carlos e Giulianna Fileni, de 31 anos, estão em Portugal há pouco mais de um ano. Oriundos de São Paulo, no Brasil, em outubro do ano passado uma oportunidade de trabalho trouxe-os até Vila Nova de Famalicão. "Queríamos vir para Portugal, comecei a enviar currículos e consegui emprego cá", diz Carlos, formado em Treino Desportivo, Gestão do Desporto e Ciência do Movimento Humano.
Não conheciam ninguém no concelho. O primeiro Natal foi muito diferente dos que estavam habituados. Sem família e amigos e faltando os paladares do Brasil acabaram por passar a consoada com uma uma piza. "Foi triste! Compramos uma piza, uma garrafa de vinho, fizemos uma videochamada para a família e fomos à missa do galo", conta Giulianna, que está grávida de Bento.
Mas, se em 2021, a época natalícia foi solitária, este ano foi diferente. A consoada foi passada com um casal amigo, também brasileiro, e a pizza não fez parte da ementa da ceia de Natal.
O casal confessa que ainda desconhece a gastronomia e tradições natalícias portuguesas. Caso das rabanadas, o bolo-rei e da aletria. "No Brasil, fazíamos árvores de Natal e enfeitávamos a casa", contam. "Aqui o espírito é vivido de forma mais intensa. Vê-se na decoração das ruas e nas iniciativas", apontam.
Leitoa e frango ou peru assado são os pratos que tradicionalmente o casal comia no Brasil, na consoada. No dia de Natal, o churrasco não podia faltar , bem como frutas, pudim e salame, embora no Brasil não exista um doce característico da época, como acontece em Portugal. Este ano, a mesa de Natal de Carlos e Giulianna junta o bacalhau e churrasco acompanhados por cerveja, a bebida que elegem também no país de origem, embora não falte o vinho.
Pormenores
Maioria do Brasil
Diz o Censos 2021 que neste ano moravam em Portugal 542 165 estrangeiros, representando 5,2% o total da população residente. Os brasileiros são a comunidade mais representativa.
Mais mulheres
Em 2021, a população estrangeira era constituída maioritariamente por mulheres (276 593 mulheres e 265 572 homens), significando uma relação de masculinidade de 96 homens por cada 100 mulheres.