O que fica depois do vazio? Será o futuro igual ao presente que a Covid-19 interrompeu? Se as consequências imediatas são evidentes, com ruas moribundas a substituir o bulício de sempre, o amanhã que ninguém sabe quando chegará pode trazer uma nova forma de olhar a paisagem urbana
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Isolamento. Esta é a palavra de ordem desde que a pandemia de Covid-19 rebentou descontrolada, primeiro na Ásia, depois na Europa e no continente americano. Desde há quase uma semana que o panorama das cidades é fotocópia fiel de um vazio ordenado pela prevenção, a melhor arma que as autoridades encontraram para combater um inimigo global que tarda em dar mostras de abrandamento. Portugal não foge à regra, com Porto e Lisboa à cabeça, e onde dantes o ritmo era acelerado, mais não há do que longos fios de silêncio e quietude. Pela primeira vez na História recente, os centros urbanos foram forçados a parar. Até quando? Essa é a dúvida a que ninguém ousa responder.
"As consequências são imprevisíveis. A única certeza é que as cidades sobreviverão, apenas é cedo para se perceber como", descreve o geógrafo Rio Fernandes, professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e presidente da Associação Portuguesa de Geógrafos.
O facto de esta epidemia ter surgido de forma avassaladora, obrigando à rápida tomada de medidas com efeitos imediatos e evidentes no normal funcionamento das cidades a (quase) todos os níveis, trouxe consigo níveis de incerteza ainda impossíveis de apurar.
As cidades são feitas de pessoas, de misturas, de encontros. Estando fechadas, como agora estão, estão desoladoramente abandonadas
"As cidades são feitas de pessoas, de misturas, de encontros. Estando fechadas, como agora estão, estão desoladoramente abandonadas, com efeitos evidentes e devastadores de arrefecimento económico a curto prazo e de grande incógnita a médio e longo prazos", considera Rio Fernandes.
Como reflete Paula Teles, engenheira especialista em planeamento do território, "a pandemia é transversal e atingiu todos os grupos sociais. De repente, o espaço público deixou de ser de ricos ou de pobres e passou a ser de ninguém".
Sem antecipação alguma, foi obrigatória a rápida adaptação às circunstâncias de uma realidade desconhecida que surpreendeu tudo e todos. O Homem foi levado a saber moldar-se a uma vida que nunca foi a sua.
"A verdade é que o caos com que repentinamente as cidades foram confrontadas obrigou-as a adaptarem-se. Quem nelas vive passou a ter outros hábitos, é verdade que forçados. Mas as cidades não morreram, a realidade é essa, os seus habitantes é que foram obrigados a adotar outros comportamentos que a deixaram sem os seus ritmos e rituais", explica.
E com o vazio a tomar conta das ruas, é para o interior das casas que vale a pena a olhar, esses núcleos onde agora tudo se concentra. "Uma oportunidade para reequacionarmos alterações de comportamento", sublinha Rio Fernandes. "São tempos de maior cautela devido ao afastamento forçado, de tendências mais defensivas, de valorização da proximidade e de recentramento na família e nas vizinhanças".
Do negativo, aproveitar o positivo
Esta reclusão urbana global pode ser pontapé de saída para uma nova visão das cidades. A convicção é de Paula Teles, que aponta para o caso português e refere que o que hoje parece negativo pode ser o princípio de mudanças drásticas quando a normalidade for retomada, independentemente de e quando o for.
"Olhar para as cidades desertas é um bom ponto de partida para nos fazer pensar. Sem dúvida que se trata de um pontapé de saída acidental para alterarmos comportamentos", aponta a especialista.
Há mudanças forçadas que podem tornar-se realidade recorrente quando o monstro for ultrapassado. O teletrabalho, por exemplo, que milhões de pessoas num ápice foram obrigadas a adotar, transportando, dessa forma, o escritório para o ambiente doméstico, foi solução de recurso que poderá tornar-se, depois, em método utilizado assiduamente. Com consequências positivas a vários níveis. "Desde logo a redução das emissões poluentes, porque com menos deslocações haverá um número mais reduzido de veículos a circular nas cidades. E também na mobilidade, já que menos pessoas nas ruas significará maior capacidade de resposta, nomeadamente, dos transportes públicos", explica Paula Teles.
"É um bom ponto de partida para uma reflexão. Se foi possível recorrer em massa ao teletrabalho, porque não adotá-lo com mais frequência quando a sociedade retomar os dias de normalidade?", questiona. "Há que mudar de hábitos para poder alterar o quotidiano", desafia Paula Teles.
Que este abalo sirva para olharmos para dentro, que sirva para um sinal que o planeta nos dá para que tenhamos a possibilidade de mudar
Por estranho que possa parecer, as cidades podem obter ganhos desta momentânea perda do seu sentido original. Ganhos esses que, inclusive, já começaram a ser percebidos e sentidos. "Os efeitos mais positivos são, sem dúvida, a nível ambiental, com diminuição visível dos níveis de poluição", lembra Rio Fernandes. Se a este respeito ainda não foram conhecidos números relativos a Portugal, a verdade é que em cidades sobrecarregadas como Veneza foi possível verificar que os poluidíssimos canais renovaram as águas e assistiram ao regresso de cardumes de peixes que há muito lá não penetravam, ou que na imensa China a quarentena obrigatória reduziu drasticamente os níveis de emissão para a atmosfera de dióxido de nitrogénio, o NO2 que automóveis e indústria libertavam a ritmos proibitivos e perigosos.
"E, depois, há o regresso do sentido de reaproximação social e de sentido comunitário. A cidade deixou de afastar as pessoas para as reaproximar. De forma forçada, é verdade, mas a verdade é que existe esse paradoxo", constata o professor universitário.
A Covid-19 veio demonstrar que as cidades têm limites. Mas que não deixarão de ter razões para sorrir quando a normalidade regressar. "Porque o ciclo da vida não pára", como resume Paula Teles, e será necessário voltar onde sempre se esteve. "Preferencialmente com alterações de hábitos. Que este abalo sirva para olharmos para dentro, que sirva para um sinal que o planeta nos dá para que tenhamos a possibilidade de mudar", avisa.