Unidade que faz transplantes de fígado a crianças de olho no surto e mão na guerra
Único centro de transplantação hepática pediátrica do país, em Coimbra, com experiência e capacidade de adaptação, prepara-se para eventual surto de hepatite aguda.
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A unidade de transplantação hepática do Hospital Pediátrico de Coimbra, a única do país onde se fazem transplantes de fígado a crianças, entrou, nos últimos dias, em duas novas frentes. O surto de hepatite aguda de origem desconhecida que já afetou perto de 200 crianças em todo o mundo, das quais cerca de 20 precisaram de transplante de fígado, pode entrar pela porta a qualquer momento. Ou não, mas é preciso estar preparado. Ao mesmo tempo, está a entrar a guerra. Duas crianças ucranianas com cirrose descompensada e a precisar de tratamento urgente deverão chegar em breve.
"Carpe diem". A coordenadora da unidade, Isabel Gonçalves, vê o surto com preocupação, mas sem alarme. Casos de hepatite aguda de origem desconhecida acontecem todos os anos (um ou dois) e são responsáveis por 40% do total das chamadas hepatites fulminantes em crianças, explica a hepatologista pediátrica.
O que está a gerar preocupação, refere a também porta-voz do grupo de trabalho criado pela Sociedade Portuguesa de Pediatria para o surto de hepatite aguda, é o aumento de casos num curto espaço de tempo. Ainda assim, depois da "explosão" no Reino Unido, surgiram apenas alguns casos em vários países, o que pode dever-se, também, ao aumento da vigilância. Independentemente da causa desta hepatite, que ainda é desconhecida, 90% das crianças recuperam em duas a três semanas e ficam sem sequelas. "É como se tivessem tido uma constipação", realça Isabel Gonçalves.
Às restantes 10%, é preciso dar resposta e a unidade, liderada por Isabel Gonçalves "está preparada". Fica no piso dois do Hospital Pediátrico de Coimbra e tem quatro quartos de internamento, com capacidade de expansão, se necessário, garante a diretora do Departamento de Pediatria, Guiomar Oliveira. "É tudo uma questão de ajustar os recursos humanos", assegura, lembrando as lições deixadas pela pandemia.
Com seis anos, o filho de José Nunes é um dos "hóspedes" da unidade nos dias que correm. Foi transferido do Hospital de S. João, no Porto, para Coimbra em estado crítico, mas foi possível reverter o quadro sem necessidade de transplante. Os olhos amarelos, a diarreia e o cansaço foram os sinais de alerta para a família. "Que sirva de alerta para outros pais: é muito importante detetar cedo", avisa José.
Naquela unidade sente-se o peso da responsabilidade, mas, também, a segurança de quase três décadas de experiência num total de 290 transplantes de fígado em 245 crianças (algumas precisam de mais do que um). É um procedimento relativamente raro (média de 11 por ano) e, num país com dez milhões de habitantes, não é recomendado mais do que um centro, para concentrar casuística, experiência e recursos.
Enxertos de adultos
"O fígado é o órgão mais complexo em termos de cirurgia" e nas crianças, em 60% dos casos, são usados enxertos de fígados de adulto, redimensionados para se adaptarem à anatomia infantil. Pelos múltiplos vasos e artérias com diâmetros minúsculos, o corte do órgão exige elevada técnica.
Entre 11% e 15% dos transplantes são de dador vivo, mas a prioridade é o dador cadáver, para evitar submeter uma pessoa saudável a uma cirurgia, explica Isabel Gonçalves. Em termos de compatibilidade, "é o órgão menos exigente", basta ser do mesmo grupo de sangue. E em casos emergentes, pode recorrer-se a um dador incompatível.
Cerca de um terço das crianças transplantadas em Portugal sofre de uma anomalia congénita - nascem sem canais biliares - que provoca cirrose hepática. Depois de transplantadas, "a maioria tem uma vida perfeitamente normal", no entanto, entre 20% e 30% desenvolvem complicações, que exigem internamentos.
Experiência
290 transplantes hepáticos em 245 crianças foram realizados, desde 1994, pela unidade de referência do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. A idade média dos transplantados é de três anos.
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Centro de referência
A Unidade de Hepatologia e Transplantação Hepática Pediátrica do Hospital Pediátrico de Coimbra faz parte do Centro de Referência de Transplantação Hepática do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), juntamente com a unidade de adultos.
10% são emergentes
Os transplantes emergentes, que exigem um dador em 24 a 48 horas, representam 10% do total de transplantes hepáticos pediátricos (um por ano).
Sobrevida de 87%
A taxa de sobrevida das crianças transplantadas em Coimbra é de 87% em quase 30 anos.
Caso suspeito no S. João não tem hepatite aguda
Criança de 21 meses testou positivo para três vírus, incluindo o da gripe A
Os resultados dos exames feitos à criança que esteve internada no Hospital de São João, no Porto, com "suspeita" de hepatite aguda idêntica à que tem sido reportada a nível mundial excluíram essa hipótese e revelaram a existência de três vírus, incluindo da gripe A. Qualquer um deles poderá ter sido a causa da patologia hepática aguda diagnosticada, que tem vindo a evoluir favoravelmente. O menino de 21 meses teve alta na quinta-feira à tarde.
Num comunicado, enviado ontem de manhã, o Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ) esclareceu que "a criança testou positivo para três vírus, entre os quais o Influenza A, sendo que qualquer um deles pode ter sido a causa da patologia hepática aguda que foi diagnosticada. Os resultados dos exames ao menino de 21 meses excluíram a hipótese do quadro de hepatite aguda que tem sido descrito. O menino encontra-se estável e a evoluir favoravelmente, estando o hospital a monitorizar e a prestar todos os cuidados necessários", acrescentou aquela unidade.
Ao JN, Isabel Gonçalves, coordenadora da unidade de transplantação hepática do Hospital Pediátrico de Coimbra e porta-voz do núcleo de trabalho da Sociedade Portuguesa de Pediatria, criado por causa do surto que está a ocorrer a nível mundial, explicou que "quase todos os vírus podem provocar uma subida das enzimas do fígado". Com a recuperação da infeção, os valores voltam ao normal em poucos dias.