Durante os incêndios rurais que deflagraram no verão de 2022, foram reportados casos em que o uso desadequado de helicópteros levou ao incremento de fogos. Peritos verificaram casos em que os meios não foram utilizados devido a problemas mecânicos. O relatório final é apresentado esta terça-feira em Lisboa.
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Esta é uma das conclusões do relatório final do painel de peritos convidados pelo Governo para analisarem, de forma independente, as causas e os prejuízos dos grandes incêndios do ano passado. No documento a que o JN teve acesso, o grupo de trabalho que analisou a intervenção durante o combate aos incêndios aponta que, embora o emprego apropriado de meios aéreos possa ter "uma importância decisiva para o sucesso" das operações, “têm-se registado diversos episódios em que o emprego destes meios parece estar associado a ativações ou reativações do fogo”.
Um dos episódios verificados no documento é a manobra feita por um helicóptero durante o combate ao grande incêndio que deflagrou, em agosto de 2022, na Serra da Estrela, para recolher a tripulação já numa fase em que o fogo estava quase a ser resolvido. Segundo o relatório, a manobra causou “um episódio de comportamento eruptivo” que fez “perder o controlo” do fogo. Os especialistas apontam, por isso, que além de ter reavivado o fogo, é possível que a manobra “tenha provocado focos secundários para a vertente oposta da encosta”.
Neste caso, a falta de acessos foi “um fator determinante para que o incêndio tivesse tomado as proporções que tomou”. Porém, o uso dos meios aéreos sem ser complementado com os meios terrestres, acaba por “atrasar a propagação do fogo, que muitas vezes volta a reativar por não ter tido consolidação”, referem. Com uma área ardida de 27 mil hectares, o incêndio no Parque Natural da Serra da Estrela foi o sexto maior incêndio em Portugal desde que há registo.
Melhor formação e treino dos pilotos
Os peritos explicam que para evitar a reativação do fogo, a manobra do helicóptero deveria ter acontecido numa zona mais afastada do perímetro do incêndio, sobretudo longe daquela zona que estava mal consolidada e com uma linha de água por perto. Num segundo cenário em que se admite que não foi possível evitar que o perímetro do fogo chegasse tão próximo da linha de água, "toda esta zona deveria ter sido sujeita a um esforço acrescido de consolidação, uma vez que seria de esperar que a transposição da linha de água pelo fogo levaria a uma propagação violenta" das chamas. No entanto, os especialistas concluem que esse "esforço extraordinário de consolidação" não estaria ao alcance dos meios no local.
Para evitar estes fenómenos, os especialistas recomendam uma melhor formação e treino dos pilotos e agentes que operam os meios aéreos. Por outro lado, tendo em conta a importância dos meios para o combate aos incêndios, bem como o facto de serem recursos dispendiosos, sugerem que se opte por aeronaves mais modernas.
No relatório, os peritos verificaram ainda situações de "indisponibilidade ou inoperância” dos meios aéreos. Os helicópteros que não chegaram a participar no combate às chamas foi devido a problemas mecânicos, que os especialistas associam à mobilização de aeronaves menos recentes. Como aconteceu no incêndio de Murça, em julho, no qual foram despachados dois destes meios, “embora um deles não tenha saído por problemas no motor".
Em geral, os especialistas atribuem as situações de reacendimentos dos fogos a uma "identificação e vigilância deficientes" dos chamados pontos quentes dos incêndios. Observam, por isso, que o uso de produtos químicos nas ações de combate e, em especial, na consolidação do rescaldo poderia ter levado a um combate "mais eficiente" dos fogos.
Nesta análise à situação durante o fogo, os peritos verificaram ainda - com base nos dados do Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal (SIRESP) - "uma grande assimetria" entre o tempo despendido dos bombeiros e de elementos da Força Especial de Proteção Civil nas áreas afetadas próximas das povoações e estradas em comparação com os espaços rurais. Os especialistas notam, por isso, a necessidade de um maior equilíbrio na proteção de ambas as áreas.
"É consensual que são precisos cada vez mais recursos humanos que trabalhem profissionalmente, e na maior parte do ano, na gestão dos espaços florestais e das áreas envolventes das habitações, e na prevenção e supressão dos incêndios", pode ler-se no documento.
Os peritos consideram positivo o facto de as autoridades valorizarem a opção, "cada vez mais frequente, de confinar as populações em perigo, mas aconselham que sejam na mesma ponderadas as condições em que se deve fazer a evacuação de um lugar.
O relatório é resultado de uma avaliação técnico-científica feita por um grupo de 32 peritos e cientistas coordenado pelo professor da Universidade do Porto José Manuel Mendonça. Durante quatro meses, no período entre setembro de 2022 e janeiro de 2023, os especialistas, dividos em três grupos de trabalho, analisarem as regiões afetadas pelos sete grandes incêndios que marcaram o verão do ano passado, olhando para o território antes, durante e após terem ocorrido.
São estes os fogos que deflagraram na Serra da Estrela, em Murça e Vila Pouca de Aguiar (de 17 a 27 de julho), em Ourém, Ansião e Leiria (de 6 a 18 de julho) e em Albergaria a Velha (10 a 15 de julho).
Faixas de gestão de combustíveis
As condições meteorológicas fora do comum registadas situaram 2022 entre os anos com maior perigosidade de incêndio de que há registo. Na análise sobre o período antes dos fogos terem ocorrido, os peritos revelam que a antevisão sazonal de perigo potencial apontava condições favoráveis para a ocorrência de incêndios de proporções elevadas em três das quatro regiões onde acabaram por deflagrar os grandes incêndios do ano passado.
De forma global, nesse ano atravessou-se um período de seca prolongada, e muito acentuada em algumas regiões do país, agravado por períodos de ondas de calor, que tornaram este ano particularmente propício à ocorrência de incêndios florestais graves.
Para reduzir esse perigo, os especialistas sublinham a importância de se criarem faixas de gestão de combustível ao longo das estradas e linhas de transporte de energia, em particular no interior das florestas.
Uma gestão que tem ficado aquém do esperado: o material vegetal e lenhoso existente na área onde acabou por deflagrar o incêndio do Parque Natural da Serra da Estrela deveria ter sido reduzido em 2180 hectares através de um uso do fogo controlado, entre 2018 e 2022. Porém, foi de 679 hectares (de forma controlada e com queimadas autorizadas), "o correspondente a apenas 32% da área originalmente planeada", apontam.
"Tal como previsto no Programa Nacional de Ação, o fogo controlado e a pastorícia poderão ser importantes alternativas para essa gestão. Há, por isso, que analisar as razões que fazem com que a sua utilização seja, até agora, bastante inferior ao que tem sido preconizado", lançam os investigadores.
Segundo o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), o ano passado arderam mais de mais de 110 mil hectares, tendo ocorrido um total de 10.401 incêndios rurais, o que tornou 2022 o pior ano desde 2017. Apesar da dimensão e consequências dos incêndios, no ano de 2022 registaram-se quatro vítimas mortais (um piloto, um bombeiro e dois civis), um número significativamente menor em comparação com os anos de referência (2003, 2005, 2013 e 2017).