Utilização do sistema criado para reduzir listas de espera é cada vez menor. Cartas enviadas a utentes induzem em erro quanto a alternativas possíveis.
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O sistema criado para garantir que os doentes são operados no prazo recomendado pelos médicos é cada vez menos usado. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) emite vales para que possam ir ao privado, mas a maioria é recusada. As cartas recomendam unidades longe de casa e não tornam claro que pode ser escolhida qualquer uma, desde que tenha acordo com o Estado, diz a Associação da Hospitalização Privada (APHP).
Ao JN, Óscar Gaspar, presidente da APHP, refere um caso concreto que, assegura, é frequente. Um utente de um hospital de Lisboa recebeu um vale-cirurgia para uma intervenção de otorrino, onde são apontadas três unidades a que pode recorrer - o que levanta dois problemas, diz Óscar Gaspar.
Primeiro, a carta "não deixa claro" que as unidades indicadas são uma simples sugestão e que "a pessoa tem direito a indicar um hospital da sua zona de residência, desde que tenha convenção para a cirurgia".
Segundo, é comum as unidades sugeridas estarem a centenas de quilómetros de distância. No caso do utente de Lisboa, foi proposto ir a Coimbra (200 km), a Felgueiras ou a Riba de Ave (ambas a 360 km). "Não havia um hospital mais próximo, em Santarém, Leiria que fosse?", questiona Óscar Gaspar. "Os vales-cirurgia não põem o cidadão em primeiro lugar", conclui.
A experiência dos privados, porém, é diferente da do setor social. Manuel Lemos, da União das Misericórdias, assegura que estão a ser muito procuradas. "As misericórdias sabem acolher bem as pessoas", justifica. Manuel Lemos avança uma segunda razão: o Norte tem mais oferta. "Os hospitais públicos de Lisboa não respondem e os privados estão a rebentar", diz.
Só foram usados 18%
O JN perguntou à Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) por que razão os vales sugerem unidades privadas ou sociais longe da casa do utente. Em resposta, fonte oficial garantiu que a proximidade é um critério. Os outros são "os melhores tempos de espera" e o facto de a unidade ter a valência em causa e acordo com o Estado.
Questionada sobre se a recomendação de hospitais a centenas de quilómetros de distância desincentiva os utentes, disse que o vale visa "permitir a resposta cirúrgica em tempo útil", sem custos adicionais para as pessoas. E não se pronunciou sobre o facto de a carta ser omissa sobre a possibilidade de o utente escolher onde quer ser operado.
Este ano, até 28 de outubro, a ACSS emitiu 178 119 vales, mais 3% do que em 2019. A larga maioria (82%) ficou por utilizar e só 18% deram ao utente a cirurgia de que necessita. E a pandemia só explicará parte das recusas: em 2019, apenas foram utilizados 20% dos vales.
COMO FUNCIONA
SIGIC foi criado em 2004
Em 2004, uma Resolução do Conselho de Ministros criou o Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC), para "ajudar a gerir as listas de espera de inscritos para cirurgias no Serviço Nacional de Saúde", disse a ACSS.
Vale emitido a 75% do tempo
A ACSS envia o vale-cirurgia quando o SNS não consegue fazer a operação dentro de 75% do tempo de resposta recomendado para essa cirurgia.
Utente usa ou recusa
Quando recebe o vale, o utente pode fazer uma de duas coisas: marcar a cirurgia numa unidade de saúde privada ou social ou recusar o vale.
Quais são as consequências?
Se utilizar o vale, fará a operação e não terá de pagar mais do que pagaria se a fizesse no Serviço Nacional de Saúde. Se recusar, tem de dizer porquê: quer continuar inscrito no hospital público e aguardar por vaga; entretanto já foi operado; desistiu da operação; ou em caso de morte. Nestes três casos, sai da lista de espera.