Primeira lei fundamental instituiu a separação de poderes e deu grande primazia às liberdades individuais. Tem continuidade até aos dias de hoje.
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Há 200 anos, a 23 de setembro de 1822, nascia a primeira Constituição de Portugal e inaugurava-se uma nova era constitucional portuguesa que deixa marcas até hoje. Para trás ficava a monarquia absoluta, suplantada pela monarquia constitucional que se inaugurava. Influenciada pelas fortes tradições da revolução americana e francesa, e pelos ideais liberais que triunfaram no século XIX, a constituição de 1822 - que hoje será assinalada numa sessão solene no Parlamento - destaca-se pela especial importância que dá aos direitos fundamentais, liberdades e garantias dos cidadãos, disse, ao JN, o constitucionalista Jorge Miranda.
"No primeiro artigo diz assim: a Constituição portuguesa tem por objeto atribuir e observar os direitos, a segurança, a liberdade e propriedade de todos os portugueses", lê Jorge Miranda, o "pai" da atual Constituição, em entrevista ao JN.
O que Jorge Miranda destaca constitui o artigo 1 do primeiro título do texto de 1822, que reserva dezanove artigos para os "Direitos e deveres individuais dos portugueses", acrescenta o constitucionalista e professor da Universidade Lusíada do Porto, José Domingues. É uma "primazia singular da Constituição vintista", explica, pois nenhuma outra dá tamanho destaque aos direitos fundamentais.
A Carta Constitucional de 1826 deslocou os direitos para o final do articulado e juntou-os num único artigo, diz José Domingues, e as constituições seguintes - de 1838, 1911, 1933 e 1976 - colocaram primeiro os princípios constitucionais e só depois os direitos fundamentais, concluiu.
Separação de poderes
Uma das preocupações da Constituição Vintista assentava na limitação de poderes do rei, que gozava de poder absoluto. O objetivo era "garantir as liberdades e limitar o poder. [Porque] a liberdade garante-se através da limitação do poder", explica Jorge Miranda. Estabeleceram-se então os três poderes, de forma separada, que ainda hoje são reconhecidos pela atual Constituição. O poder legislativo foi concedido às cortes, o poder executivo ao rei e o poder judicial aos tribunais, explicou o professor catedrático.
"Passou-se de uma situação de absolutismo, em que todo o poder político cabia ao rei, para uma situação em que o poder cabe à nação, ao povo, e é exercido pelos seus representantes; basicamente pelos deputados", acrescentou, fazendo notar que, a partir da Constituição de 1822, passou a haver "cidadãos que têm o poder do Estado. O poder do Estado pertence à nação", concretizou. Essa separação de poderes, acrescenta José Domingues, é própria do "paradigma do constitucionalismo liberal".
sinais de continuidade
É da Constituição de 1822 que nascem "alguns traços constitucionais que, tendo sido excluídos dos textos de 1826, 1838, 1911 e 1933, apenas constam positivados nos articulados da Constituição de 1822 e da de 1976", a que vigora agora. São eles o sistema parlamentar unicamaral, o recenseamento eleitoral oficioso e a comissão permanente do Parlamento (para funcionar nos intervalos do trabalho deste).
Jorge Miranda diz que há grandes sinais de "continuidade dos princípios da liberdade e do constitucionalismo moderno" presentes na atual lei fundamental. Desde logo a preocupação com as liberdades e com a separação de poderes. "Há uma certa continuidade textual, mas a Constituição de 1933 é uma Constituição que desvirtua completamente os princípios liberais", adverte.
Segundo Jorge Miranda, a Constituição do Estado Novo apresentava um conjunto enorme de restrições à liberdade e não garantia o pluralismo de ideias.
A Constituição de 1822, considerada a primeira de Portugal, emerge da Revolução Liberal de 1820 e está ligada ao processo de independência do Brasil.
Curiosidade
Preocupação ecologista e erro de impressão
Algo de muito interessante presente no documento de 1822, nota Jorge Miranda, "é uma preocupação ecologista" que prevê o plantio de árvores em Portugal. Ainda, conta José Domingues, "devido a um erro de impressão (que omitiu um artigo do texto constitucional aprovado a 23 de setembro), a Constituição de 1822 teve de ser impressa uma segunda vez". Ambas as versões foram feitas em 1822, conclui.
Perguntas
Quanto tempo esteve em vigência a Constituição de 1822?
A "vintista" teve um primeiro período de vigência muito curto, de apenas sete meses, conta Jorge Miranda - entre setembro a maio de 1823; e um segundo período de vigência "quase simbólica", entre setembro de 1836 e abril de 1838, na sequência da Revolução de Setembro, segundo o site do Parlamento.
Quantos artigos tem a Constituição?
A Constituição de 1822 é composta por 240 artigos e divide-se em seis títulos, sendo que o primeiro, Título I - "Dos direitos e deveres individuais dos Portugueses" -, de forma inovadora e distinta de outras constituições europeias, dá primazia a um vasto conjunto de direitos e garantias dos cidadãos.
Quantas constituições já existiram?
Desde o texto de 1822, Portugal já conheceu outras cinco constituições. São elas a "vintista", de 1822, a Carta Constitucional de 1826, a Constituição de 1838, a da República de 1911, a Constituição do Estado Novo, de 1933, e a que vigora atualmente, a Constituição da República Portuguesa de 1976 (nascida do 25 de Abril).