Dina Duarte tomou posse como presidente da Associação das Vítimas dos Incêndios de Pedrógão Grande (AVIPG) no dia 2 de janeiro. Psicóloga social, vive em Nodeirinho, aldeia onde morreram 11 pessoas.
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A psicóloga social, de 50 anos, acredita que as marcas do incêndio de 2017 só se atenuarão dentro de uma década. Dina Duarte defende a utilização de um destroçador de raízes de eucaliptos, junto às casas e vias de comunicação, para garantir segurança às populações. E alerta para a necessidade de todos se envolverem na limpeza dos terrenos, incluindo os herdeiros que deixaram propriedades ao abandono. Revela ainda que disse à Judiciária que, em Nodeirinho, houve apenas um desalojado e construíram-se três casas de primeira habitação.
Se recuar a 17 de junho de 2017, qual é a primeira imagem que lhe vem à cabeça?
A primeira imagem é de uma coluna de fogo fininha, na direção de Pedrógão Grande. Eram 2.30. A última imagem é a de um cenário de guerra. Ouviam-se explosões e via-se tudo a arder. Era noite. Tivemos a perceção de que tudo estava a correr mal. Foi o primeiro dia de muito sofrimento. No dia 18 de madrugada confrontámo-nos com as cinzas, com as mortes e com as estradas com carros abandonados, eventualmente com corpos. O mundo, como o conhecia, tinha acabado. Havia muita dor. Hoje, quando olho para aquilo que se passa na Austrália relembro-me do que passámos. Se calhar, fomos mais decorosos na utilização das imagens. O fogo ainda arde dentro de nós, pelo sofrimento, pela revolta, pela injustiça e também por amor, em solidariedade com os outros. Há um trauma associado a tudo isto. Nunca poderemos esquecer o que se passou. Foi o pior momento de todas as nossas vidas, no coletivo. A nossa vida é antes do fogo e depois do fogo.
Quantos anos poderá demorar a atenuar as marcas deixadas pela tragédia do incêndio?
A rotina das questões básicas do dia a dia já foi retomada. Mas depois há sempre a vivência dos períodos festivos, como o Natal. Se há um período que poderia eventualmente ser retirado do calendário, para os familiares das vítimas e para as vítimas, seria este. Creio que terá de passar, pelo menos, uma década, porque depois temos a tragédia que se voltou a abater sobre nós, com a questão dos donativos. Queremos que a imagem dos pedroguenses, dos castanheirenses e dos figueirenses não seja tocada. As pessoas merecem outro tipo de olhar. Não somos todos do mesmo pacote. Tem de haver uma reconciliação dos portugueses com todo este território.
Acredita que será possível apurar quem foram os responsáveis pelo incêndio, que roubou a vida a 66 pessoas, causou cerca de 250 feridos, destruiu casas, empresas e uma vasta mancha florestal?
Acreditamos que a Justiça irá funcionar. Mas, de certa forma, todos os que deixaram que o seu território ficasse abandonado contribuíram. Era muito agradável, no verão, passarmos numa estrada com imensa sombra, esquecendo que podia haver um incêndio e que podia ser um túnel de fogo.
O que é que falhou para, em junho e em outubro, ter havido dois incêndios tão devastadores?
O poder político devia ter ouvido a AVIPG. Participei em reuniões em que avisámos que, sendo um ano tão atípico em termos de calor, se deveria manter toda a vigilância, os ativos de prevenção e de combate no terreno. Chegou a meados de setembro e as pessoas ficaram por sua conta. O Governo não se pode demitir da sua função. A prevenção e a segurança das populações é algo que nunca mais poderá ser posta em causa.
As coisas mudaram desde então?
Oiço falar em muitos meios de combate, mas depois houve o incêndio de Monchique [agosto de 2018] e voltamos a questionar tudo. Só não morreram pessoas, porque elas foram retiradas à força das casas. Pouparam-se vidas, mas não se pouparam construções de vidas. Alguém que fique despojado de tudo, da única foto que tinha, perde a sua memória.
Como é que tem acompanhado as suspeitas levantadas sobre a doação de donativos e sobre a reconstrução das casas?
O problema estagnou. A Justiça está confrontada com as decisões que terá de tomar, relativamente a estes processos. O que importa, acima de tudo, é que as pessoas percebam que isto não pode voltar a acontecer.
O Revita suspendeu a reconstrução integral de seis casas, por existirem suspeitas em relação à aplicação dos critérios de apoio. Terão sido beneficiadas apenas seis famílias?
Não me parece. O que disse, na altura, à Judiciária é que, na minha aldeia [Nodeirinho] houve um desalojado e construíram-se três casas de primeira habitação. E as de segunda habitação estão por reconstruir. Acho que isto diz tudo.
Consegue precisar quantas serão?
Não. Daquilo que veio a público, não sei se serão duas a três vezes mais. O que sei é que nessas estão incluídas segundas habitações a que deram prioridade. Tem de ser feita justiça, para que a confiança dos portugueses seja restabelecida. Temos de voltar a acreditar nas instituições e elas também têm de nos provar que são credíveis. Em outubro, as vítimas receberam muito menos do que nós e, em Monchique, foi uma tristeza. Nós que somos tão solidários. É imperativo que toda esta nuvem sobre Pedrógão fique clarificada. Mas também é importante que se saiba que nem tudo o que chegou era de qualidade. Fala-se em toneladas, mas dessas há uma boa percentagem que os municípios tiveram de pagar para se descartarem daqueles donativos. Os portugueses que não me entendam mal. Tem de se respeitar a vítima que perdeu tudo e não doar vestidos de noiva, fantasias de carnaval, nem artigos de arte décor.
Como é que as pessoas que não foram apoiadas se sentem?
Injustiçadas. E as pessoas que tinham cá segundas habitações deixaram de vir passar temporadas, fazer compras, cuidar do que era delas, porque não têm onde ficar. É mais uma pedra para o nosso isolamento. Há uma revolta dessas pessoas, silenciada pela expectativa de que as coisas possam ainda vir a ser alteradas.
Concorda com a criação de uma comissão de inquérito parlamentar para averiguar a suspeita de desvio de donativos?
O início deste processo parte de cidadãos, que possivelmente também foram doadores e que querem ver esta situação clarificada. Queremos que haja justiça e tudo o que vier ajudar é bem-vindo.
A escolha dos elementos que constituem os órgãos sociais - vítimas e familiares de vítimas - foi estratégica?
De certa forma, foi um agregar de vontades de algumas pessoas que estavam um bocadinho desanimadas, nomeadamente os feridos. Sentiam que não havia o apoio que devia existir por parte da associação. A nossa prioridade é olharmos para a razão de ser da nossa existência e colaborarmos com todas as instituições que estão no território, e termos terapias complementares, que possam ajudar as pessoas a saírem desta situação de luto e de trauma.
O vice-presidente da AVIPG, Rui Rosinha, foi talvez a pessoa mais mediatizada, na sequência do incêndio. A presença dele, assim como de outros feridos, dará outra força à associação?
É a visão de uma vítima que, semanalmente, tem de ter alguma intervenção na área da saúde. Há pessoas que perderam a sua vida anterior e que nunca mais vão voltar a fazer aquilo que faziam. Há ainda um intercâmbio de conhecimentos. Nesta fase, estamos a ler os dossiês, para termos a consciência do todo. Eventualmente não teria sido necessário se tivesse havido uma transmissão de pastas. Solicitámos à anterior direção uma reunião, mas nem sequer nos deu resposta.
Por que é que Nádia Piazza não comunicou formalmente que não iria voltar a candidatar-se?
Terá de lhe perguntar a ela. Os sinais eram no sentido da continuidade. Há projetos que foram aprovados em novembro e dezembro de 2019. A AVIPG assinou os termos de aceitação. Uma associação como esta faz todo o sentido existir, quanto mais não seja porque é um ponto de encontro das pessoas que passaram por esta tragédia.
Quando foi eleita disse que estes órgãos sociais não iriam centrar-se no "eu", mas no "nós".
Há sempre alguém que tem de liderar e de dar a cara, para bem e para o mal. Agora, uma equipa é uma equipa. Por exemplo, o Rui Rosinha tem uma série de conhecimentos ligados à área do combate da prevenção de incêndios, pelo que é a pessoa ideal para dar resposta pela associação nesta área. Assim como posso dar o exemplo de um outro colega para outra área. Todos os associados têm de ter conhecimento do que se passa na associação, que está aqui para colaborar com todos, com todas as aldeias.
Está a referir-se ao projeto Aldeias Resilientes?
Sim e Aldeias Seguras. Tem de haver um ponto de encontro entre os dois, porque é incomportável para qualquer associação conseguir financiadores que permitam a execução de muitas Aldeias Resilientes. Faz todo o sentido que a Aldeia Segura seja aplicada no território ardido, com algumas nuances importantes para a associação e para os habitantes deste interior esquecido. Temos de ser todos Aldeias Seguras. Temos de estar preparados para qualquer situação. Temos de ter formas de nos autoprotegermos, enquanto não chega uma ajuda maior.
Os cerca de 1,2 milhões de euros para a construção de dois abrigos coletivos, financiadas pelo agente desportivo Jorge Mendes, já foram transferidas para a AVIPG?
Até dezembro teria de ser iniciado o processo de construção. Não tenho conhecimento concreto se foi. O que sabemos é que o mecenas Jorge Mendes tem o processo na mão, no sentido em que será ele a garantir a execução da obra.