Viu-se Fátima uma vez, em tempo de peregrinação de Maio, e poderá julgar-se que está tudo visto, que tudo é igual. Não é, se em cada peregrino tentarmos identificar o carácter único e irrepetível de cada pessoa.
Corpo do artigo
Não são iguais os joelhos que sofrem em redor da capelinha das aparições aos que por lá haviam passado minutos antes, não é igual a causa que faz chorar ou rir, paradoxo dos peregrinos em fim de linha. Há os que vêm por causa do Papa, decerto, mas a resposta que mais ouvimos foi do estilo "não quero saber do Papa para nada, só me interessa a minha fé". Estamos na "Avenida de Espinho", diremos já do que se trata.
Tendas, sobretendas, quase-tendas, nem sempre será fácil identificar as estruturas em redor do Centro Pastoral Paulo VI, moradias despojadas onde se come carapau na brasa. Nem palavras poderá haver que caracterizem, de forma certeira, tanta gente que por ali assenta arraiais, pelo menos duas vezes por ano, fazendo desse passeio a única aproximação a férias em todo o ano.
Dos dois lados da vereda, as barracas albergam gente de Espinho. Ou não, juntam-se outros da mesma corda atlântica, sejam de Gaia ou de Esmoriz. Mas os de Espinho são mais afoitos. António Vinagre, aposentado da Função Pública, diz que não tem tempo, mas volta atrás e não pára de falar. "Venho cá desde 1966 e acampo neste sítio desde 1982", diz, indicando depois o único incidente neste referencial geográfico, a Guerra Colonial, comissão de serviço na Guiné-Bissau.
Dele são os carapaus, uma grande caixa cheia deles, ida de Espinho e mantida fresca, ou coisa parecida. Como as navalheiras sobre os carapaus. Mortas e cozidas. Comestíveis. Dizem.
É outra a especialidade de Manuel Zagala, também de Espinho: cortador de carnes verdes. Mas coincide na fé popular: "Mesmo um ateu chega aqui e comove-se". Assim será, ou não, pouco importa. O protagonismo, aqui, é de homens como este, que há 21 anos aponta as férias para Maio e Outubro, para montar tenda em terreno mal preparado, mas, acreditam todos eles, abençoado, nem que seja para as irregularidades da prática religiosa: "Rezo o meu terço todos os dias, mas raramente vou à missa".
Uns dias cozido, outros cabidela. "Deviam ter cá vindo ontem, que fiz um rancho à maneira", gritam-nos do outro lado. Boa gente. "Posso andar dois meses a fazer comer sempre diferente. Em Angola, era cozinheiro na messe", gaba-se Rogério Rocha, 60 anos dono do Café Benfiquista, em Silvalde. Espinho. Obcecado pelo clube lisboeta, só de futebol fala, incluindo a frase que inventou para a parede do estabelecimento e compara a Fernando Pessoa: "Se gostas do teu clube, respeita o meu". Pois. E o Papa? "O que morreu, desse eu gostava. Agora, este já fez umas coisas que a gente não olha bem".