Ministério Público recebeu queixa em outubro sobre ataques a alunos brasileiros. Reitor da UP condena "crimes lamentáveis". Grupo Quarentena Académica acolheu mais de 100 denúncias.
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Em 10 de outubro, a página anónima na rede social Instagram "Apanhei covid na FEUP" publicou uma foto que foi o pináculo da indignação. A foto exibia o campus da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto com oito bonecos: um, ao centro a pairar, era o símbolo radial do coronavírus; os outros sete eram macacos e estavam em pose de reinação. A legenda dizia: "Sobre os ajuntamentos de brasileiros na FEUP".
Quinze dias depois, surge outra página na mesma rede social, também anónima, agora alargada ao Twitter, com potencial ofensivo pior. Denominada "Confissões FEUP", convidava à cumplicidade: "Junta-te à nossa comunidade e confessa-te". As dezenas de "confissões", publicadas sob anonimato, tinham em comum um caráter insultuoso, hostil e boçal e incorriam em vários crimes: racismo, xenofobia, sexismo, machismo, difamação e outras formas de discriminação. Novamente, a comunidade brasileira, a maior entre os 20% de alunos estrangeiros da academia do Porto (num universo total de 32 mil alunos), era o alvo do ataque central.
Os episódios, mediados pela repulsa geral dos estudantes que criaram nas redes sociais uma onda viral de condenação, causaram uma ação quase inédita da Reitoria da Universidade do Porto (UP): compilou os factos infames, abriu um inquérito interno e, a 30 de outubro, participou os crimes ao Ministério Público, órgão competente para exercer a ação penal. "Os factos em referência são objeto de investigação pelo Ministério Público do DIAP [Departamento de Investigação e Ação Penal] do Porto", confirmou ao JN fonte oficial.
"São crimes públicos lamentáveis", que "condenamos com veemência, sem cabimento na academia", diz António Sousa Pereira, desde 2018 reitor da UP. O assunto "é grave" e "terá de ter consequências".
O diretor da FEUP, João Falcão e Cunha, e o presidente da Associação de Estudantes, José Araújo, emitiram uma nota breve com "condenação veemente" e "repúdio inequívoco" das "mensagens anónimas, que refletem atitudes pouco escrupulosas ou inconscientes" e "estão a afetar negativamente a imagem da FEUP".
É preciso mais
"Ainda é pouco, é preciso fazer mais", dizem dois alunos da Quarentena Académica, grupo estudantil criado em março que já recebeu "mais de 100 queixas de estudantes estrangeiros" - destacando-se a "discriminação institucional".
"Os canais tradicionais não resolveram o assunto, o problema é estrutural e a reitoria mexeu-se, finalmente, porque o caso era demasiado visível", diz Ana Isabel Silva. "A Reitoria atuou por pressão dos estudantes e pelo medo de ver manchada a imagem da faculdade", conclui Tomás Nery.
Professores diminuem notas a quem escrever em brasileiro
Alunos do Brasil revelam prática danosa: já há mais de 100 denúncias desde março. Sindicato dos docentes desvaloriza: "Não há queixas oficiais"
"És burrinha, né?" - e a partir daí, ela que já erguera o braço três vezes, não teve coragem de tirar mais dúvidas, nem naquela aula, nem nas seguintes e no resto do semestre habituou-se a ficar encolhida.
Foi humilhante, o professor insultou o país dela, o povo, a língua, insultou-a a ela e fez bullying numa forma de xenofobia linguística com ameaça de prejuízo real: "E se não escreveres em português de Portugal, porque a língua que vocês falam lá no Brasil é errada, ainda te chumbo, é certinho porque tu és burrinha, né?". Mas o pior não foi isso, diz a aluna, foi o ambiente em que tudo ocorreu, muita gente se riu, atiraram-lhe piadinhas e risinhos e, no final, como se fosse tudo normal, ninguém pediu desculpa, ninguém falou com ela, ninguém se desdisse. E, por isso, fez queixa da situação. A aluna brasileira chegou este ano letivo à Universidade do Porto e faz parte da avalancha: é um dos 595 novos alunos estrangeiros da academia, que tem mais de seis mil estudantes de 60 países entre os 32 mil totais. No país todo, o número de alunos estrangeiros de grau bateu, também, um novo recorde: entraram em 2020 mais 5477 (+38% num ano), há agora 58 092 estrangeiros nas universidades portuguesas, o maior volume de sempre - e mais de metade são brasileiros.
O mal é geral
Os alunos do Brasil são a imensa maioria entre os mais de 100 casos que, desde março, foram denunciados à Quarentena Académica, grupo ativista estudantil criado na pandemia e que se vê a braços com queixas de xenofobia, racismo, sexismo e modos de diminuição cultural que, mostram, são prática contínua nas academias contra os brasileiros.
Nos casos consultados pelo JN, sobressai a queixa de perda direta de valores em testes escritos em brasileiro - uma aluna de Psicologia da Universidade de Lisboa revelou mesmo: "Fiz o exame junto com meu namorado e as respostas eram iguais, mas ele, que é português, obteve 15 valores e eu, que sou brasileira, 12".
As denúncias atravessam o país: há queixas em Letras e História no Porto, Psicologia em Lisboa e no Porto, Enfermagem, Médicas, Línguas e Comunicação em Aveiro, casos nos politécnicos, em Coimbra, na Universidade do Minho, na FEUP, que é um cúmulo da situação e está a ser investigada pelo Ministério Publico. Todas as queixas batem aqui: a recriminação comportamental dos professores - ou não travam afrontas dos alunos ou ativam eles a discriminação.
"Algo tem de mudar"
"Há professores sem preparação pedagógica para a distinção cultural brasileira, com preconceitos contra a língua, o país, a raça, a ignorar, em prejuízo, o Acordo Ortográfico", diz Ana Isabel Silva, doutoranda de Biologia Molecular no ICBAS da UP e que integra o grupo da Quarentena com 20 fundadores atentos nas universidades do país. "Sou portuguesa, senti vergonha, decidi agir". Aponta "a paralisia institucional perante as queixas" e a "revolta de ver que o problema é estrutural: a Reitoria contribui para esse bloqueio - as queixas nunca deram em nada".
"Algo tem de mudar, os alunos brasileiros não reveem nas vossas academias o país acolhedor, inclusivo, diverso, o país europeu avançado que anunciam", avisa Anabelly Pontes, brasileira no mestrado de Ciência Política em Aveiro e que recolhe denúncias no Grupo de Estudantes Estrangeiros. "Vejo alunos com problemas psicológicos, outros a desistir, vejo microagressões quotidianas. E vejo muitos docentes e não docentes muito mal preparados para lidar com tantos alunos estrangeiros".
"Há xenofobia institucionalizada, enraizada", acusa outro aluno brasileiro ouvido pelo JN no Porto, "são os preços mais caros para os estudantes estrangeiros, propinas, alojamentos, serviços, separação de dormitórios e cozinhas, desapoio social e tantas formas em que me sinto agredido por ser e falar brasileiro". Aplaude a investigação do Ministério Público ao caso da FEUP. E ri: "É bom, se fosse a Reitoria não acontecia nada".
"Há de tudo", diz reitor
O reitor António Sousa Pereira defende a academia, relembra os fóruns para denunciar estes casos, provedor do Estudante, Conselho Pedagógico, consultas de psicologia, associações de estudantes - órgãos que os alunos dizem não ser sedes próprias para estas questões -, aponta o Tratado de Igualdades e Deveres, recorda a mensagem de valores que distribuiu à comunidade em outubro, mas não anunciou ações ou mudanças concretas, para lá de ter pedido "mais vigilância" online ao seu Gabinete de Imagem. Dos professores, o reitor admite: "Há comportamentos menos próprios, temos aqui de tudo, mas acredito que os exemplos menos bons não são a regra, são a exceção".
O assunto passa ao lado do SNESUP, sindicato do Ensino Superior que representa os professores. A nova presidente, Mariana Gaio Alves, diz que "não há queixas oficiais", que "em 20 anos como professora nunca ouvi queixas dessas" e que "os casos serão residuais". E não concorda, "de todo, que o corpo docente esteja mal preparado para lidar com os alunos estrangeiros".