
Crime de assédio não existe no Código Penal, queixas são residuais
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Lei de 2017 reforçou quadro legislativo e obrigou a códigos de conduta. Até à data, há 203 reclamações no Estado. Sindicatos dizem que números estão "aquém" da realidade.
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A Inspeção-Geral de Finanças recebeu 203 participações de assédio laboral no setor público desde outubro de 2017, ano em que foi reforçada a lei para prevenir a prática e as empresas ficaram obrigadas a adotar códigos de boa conduta contra o assédio no local de trabalho. Por ano, entre 2018 e 2020, foram recebidas mais de meia centena de queixas (51 em 2018; 57 em 2019; 56 em 2020). Só neste ano, até meados de abril, já tinham sido reportados 28 casos. A esmagadora maioria corresponde a assédio moral. Apenas duas situações dizem respeito a assédio sexual e moral.
Os dados foram fornecidos ao JN pelo Ministério da Modernização do Estado e da Administração Pública (MMEAP), que não precisou quantas entidades ou empresas públicas possuem códigos de conduta. De acordo com a tutela, embora a elaboração do documento seja obrigatória, a lei não determina "obrigatoriedade de reporte dos códigos à Inspeção-Geral de Finanças [IGF] ou a qualquer entidade fiscalizadora". Ainda assim, "os códigos devem ser divulgados por todos os colaboradores, clientes, fornecedores e público em geral". No caso da Função Pública, cabe à IGF verificar a existência dos documentos durante as suas auditorias, sendo que, até à data, houve inspeções em 46 empresas do Estado. Todas possuíam código de ética e conduta.
Medo e falta de crença
No que toca às participações por assédio, entre as 203 queixas registadas, 62 encontram-se concluídas, oito estão em apreciação, 64 em instrução e 30 foram devolvidas para aperfeiçoamento. Houve 39 participações arquivadas por desistência, por serem repetidas ou por serem do setor privado.
Para Fátima Messias, coordenadora da Comissão para a Igualdade de Mulheres e Homens da CGTP, apesar de "positiva", a lei de 2017 "ficou muito aquém das necessidades". A sindicalista aponta como falhas o facto de o "assédio não ser considerado crime" e a não "regulamentação das doenças profissionais derivadas do assédio", uma vez que a prática prolongada provoca ansiedade, depressão e insónias na vítima. Defende ainda "a inversão do ónus da prova" para que não tenham de ser as vítimas a constituir a prova. "Os códigos de conduta são importantes para assinalar comportamentos inaceitáveis e proibidos por lei, mas temos sérias dúvidas de que, em algumas empresas, tenham sido instituídos. Temos dúvidas maiores de que a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) no privado [ou a IGF, no setor público] tenha tido condições de averiguar e fiscalizar toda essa implementação", disse a sindicalista, considerando que o número de queixas anuais reportadas está "muito aquém" da realidade. Até porque os relatos que chegam aos sindicatos são superiores.
Também José Abraão, secretário-geral da Federação dos Sindicatos da Administração Pública, considera "residual" o número de participações. O medo de represálias e a "falta de crença no sistema" poderão travar as denúncias. "O código não basta, é manifestamente insuficiente. As culturas nos serviços não se alteram por lei. É com formação, educação e preparação das pessoas. Podemos ter ótimas leis e ótimos códigos de conduta, mas enquanto não houver formação, qualificação das pessoas e responsabilização dos dirigentes, o assédio e a perseguição continuarão a crescer", referiu o sindicalista.
Crime de assédio não existe
No Código Penal, o crime de assédio não existe e divide-se entre a importunação sexual e a coação. Mas estes dois crimes também representam outros tipos de ilícitos. Por exemplo, quem exibir nudez na rua pode responder por importunação sexual, pelo que os dados estatísticos das autoridades, em termos criminais, não refletem apenas casos de assédio sexual. Assim, existem poucos dados reais sobre o fenómeno.
PAN quer autonomizar crime
O Grupo Parlamentar do PAN submeteu, há 15 dias, na Assembleia da República, um projeto de lei que visa "adequar a legislação portuguesa que se encontra desajustada em matéria de crimes sexuais", relativamente ao assédio sexual.
