
Vasco Sampaio
Orlando Almeida/Global Imagens
Desde que a lei mudou, há um ano, 33 jovens já fizeram a transição no registo. Associações aplaudem novo enquadramento.
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Das 135 pessoas que mudaram de género este ano, 89 passaram a ser homens e 46 mulheres. Entre os 16 e os 18 anos, foram 22 os jovens que formalizaram na conservatória aquilo que sempre sentiram: que tinham nascido com o sexo errado. Juntam-se aos 11 que já no ano passado tinham aproveitado a lei que alargou aos transgéneros maiores de 16 anos a mudança de sexo. A nova legislação, dizem as associações, foi um grande avanço.
Em comparação com o ano passado, regista-se um aumento dos casos. No ano passado, até à data da entrada em vigor da nova lei (8 de agosto), 103 pessoas tinham ido à conservatória mudar nome e género no cartão de cidadão, de acordo com dados do Instituto de Registos e Notariado (IRN) enviados ao JN. De agosto a dezembro, foram mais 101. Este ano, até 12 de agosto, já foram 135.
Corria o mês de julho de 2018 quando as associações LGBTI gritavam vitória nas galerias do Parlamento. A lei de autodeterminação de género e proteção das características sexuais tinha sido finalmente aprovada. Entrou em vigor a 8 de agosto e desde então 33 jovens transexuais concretizaram a mudança de sexo e nome a partir dos 16 anos.
Os menores têm, contudo, que apresentar um relatório médico a atestar que estão conscientes da decisão. "Nem tudo é ideal, mas esta lei foi um passo enorme. E já fez muitos jovens felizes", diz Manuela Ferreira, presidente da Amplos, que garante que "a mudança de nome é das coisas mais importantes, é serem reconhecidos por aquilo que realmente são".
Catarina Rego Moreira, psicóloga que trabalha no Gabinete de Apoio à Vítima para Juventude LGBTI da Casa Qui, explica que "muitos jovens estavam há muito a aguardar por isto". "Além dos 16 anos, a retirada do diagnóstico médico foi crucial. Permitiu a separação entre o âmbito clínico e legal, ao pedir um relatório que atesta capacidade de decisão e não uma disforia de género", sustenta. Até porque, explica, há pessoas trans que não pretendem fazer cirurgia, querem só a transição social.
Desde a nova lei, não se têm sentido grandes problemas nas conservatórias. Mas as associações já tiveram que intervir em alguns casos por haver desconhecimento e falta de preparação. Manuela Ferreira critica, porém, o facto de a alteração do cartão de cidadão e certidão de nascimento não ser acompanhada pelos restantes serviços estatais. "Devia ser automático."
guia para hospitais
A lei previa ainda orientações para unidades de saúde e escolas. O guia para centros de saúde e hospitais foi lançado no mês passado. As associações LGBTI colaboraram com a Direção-Geral da Saúde na elaboração. Até porque, segundo Catarina Moreira, "há uma necessidade de formação médica transversal". Inclui recomendações aos profissionais, desde a não classificação da transexualidade como doença à rede de referenciação. "Quando a pessoa chega ao médico de família, que é a primeira porta, é importante o médico saber para onde o pode encaminhar", diz a responsável da Amplos, que pede a descentralização dos serviços. "Há exames e cirurgias, como a mastectomia, que podem ser feitos noutras unidades sem ser na de referência, em Coimbra."
Falta o guia para estabelecimentos de ensino. Mas há escolas que já permitem o nome com que se identificam nos testes e pautas e o uso de casas de banho e balneários. O objetivo é uniformizar as medidas em todo o país.
"Tornei-me uma pessoa muito menos ansiosa"
Há precisamente um ano, Vasco Sampaio entrou na conservatória. Foi o fim definitivo do nome feminino que carregava desde sempre para receber o cartão de cidadão com que sempre sonhou. Tinha 17 anos e já tinha tudo preparado, incluindo o relatório do médico, caso a lei de autodeterminação de género fosse aprovada. Se não fosse, Vasco teria de esperar pelos 18 para mudar o sexo e o nome nos documentos. "Foi uma sensação de liberdade indescritível."
Em miúdo sempre teve o cabelo curto: "E tinha brincadeiras típicas de rapaz. Lembro-me de pedir às pessoas para me chamarem João". Nasceu num corpo que não era o dele, mas estava longe de imaginar o que era a transexualidade. "As roupas, os maneirismos, as brincadeiras. Pensava que era só uma maria-rapaz." Mas não. Ia entrar no 10.º ano quando decidiu assumir o nome Vasco.
"Foi muito complicado. Recusava-me a usar os balneários femininos. A escola acabou por me tratar pelo apelido", recorda.
"Antes, isolava-me"
Um ano depois de ter oficialmente o nome Vasco, tudo mudou. Hoje, vive sem receio. "Antes, evitava ir a sítios onde me pediam identificação, isolava-me, vivia com medo".
Perdeu a conta às vezes que teve que contar a sua história em público para justificar uma aparência que não batia certo com o nome que carregava. "Agora, sei que posso ir a qualquer lugar e que sou tratado pelo meu verdadeiro nome. Tornei-me uma pessoa muito menos ansiosa e mais à vontade em público. Já não tenho medo de ir ao hospital e ser exposto, de estar na escola e responder a um nome que não é o meu", conta.
Vasco já tem 18 anos. Aos 16 começou o tratamento hormonal, aos 17 fez a mastectomia e também conseguiu o nome que sempre quis. Correu para a conservatória mal a lei entrou em vigor. "Fui com a minha mãe. Foi um processo simples e rápido".
Nas mãos, levava apenas um relatório do seu médico a atestar que está consciente da decisão. "Tinha 17 anos, não tinha cartões bancários nem carta de condução. Não tive que mudar mais nada".
Este ano, foi lançado um guia de orientações para os profissionais de saúde. Vasco respira de alívio.
"A associação de que faço parte, TransMissão: Associação Trans e Não-Binária, contribuiu para a elaboração do guia de atendimento a utentes trans. A quantidade e a gravidade de situações que aconteceram comigo e praticamente todas as pessoas trans quando procuram cuidados de saúde é inadmissível. Por isso, é que isto é útil", sublinha.
Um guia idêntico também vai ser lançado para as escolas. "No 10.º e 11.º anos, vivi situações horríveis na escola porque não sabiam o que fazer comigo. Agora, as pessoas trans que estão na escola vão ter um apoio que, infelizmente, eu não tive".
