Presidentes das áreas metropolitanas exigem referendo na próxima legislatura. Reforma deve acumular com maior autonomia municipal.
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Eduardo Vítor chama-lhe "alinhamento estelar". Fernando Medina enfatiza o caráter histórico de um acordo que, provavelmente pela primeira vez, pôs as áreas metropolitanas do Porto e de Lisboa no mesmo palco reivindicativo. O avanço do passe único é a face mais visível desta sintonia de posições entre os líderes socialistas dos dois blocos urbanos onde vive quase metade da população nacional e que gera mais de metade da riqueza do país. Mas os autarcas de Lisboa e de Gaia ao leme político de 35 municípios (17 a norte e 18 a sul) querem mais. O reforço da municipalização não chega. A eleição direta dos responsáveis das áreas metropolitanas não chega. A regionalização, garantem, tem de avançar já de forma cumulativa. E o "já" é na próxima legislatura. Recado para António Costa: o PS tem de inscrever a reforma como obrigatória no programa eleitoral com que vai apresentar-se às eleições legislativas de outubro. Porto e Lisboa numa entrevista conjunta.
Qual é hoje a grande batalha pela afirmação das áreas metropolitanas, onde vive quase metade da população portuguesa e onde se produz mais de metade da riqueza do país?
Fernando Medina (FM) - A questão central das áreas metropolitanas é exatamente a que disse na sua pergunta. De reconhecermos que concentram quase metade da população e mais de 50% da riqueza criada e concentram os setores mais modernos, mais dinâmicos, mais capazes de puxar para a frente a economia, por um lado, mas também é aqui que se concentram os problemas de exclusão mais severos que o país encontra. Portugal tem muitas vezes uma leitura muito simplista de um litoral pujante e de um interior pobre e abandonado. Há de facto problemas no interior, e há uma enorme necessidade de as cidades médias do interior se organizarem para aproveitarmos o muito que já se investiu, mas as áreas metropolitanas têm em simultâneo esta dupla realidade. Estão aqui as melhores instituições, as mais avançadas, mas estão aqui também fenómenos de exclusão e de dificuldade muito acentuada, por vezes até mais difícil de resolver do que no interior.
Agregam o que de melhor e pior o país tem, é isso?
FM Exatamente. E esta especificidade de termos 35 municípios que merecem ser olhados de uma forma global é porventura o maior desafio. Por essa razão organizámos uma cimeira, definimos um conjunto de prioridades muito preciso, com os transportes e a habitação à cabeça, e já começamos a ter frutos dessa nossa aposta conjunta.
Do que mais se orgulha neste caminho conjunto feito por Porto e Lisboa?
Eduardo Vítor Rodrigues (EVR) - Em primeiro lugar, isto representa um novo ciclo político no país, que estava habituado a fazer apenas um debate, que era o da regionalização, a um zonamento que é normalmente o dos distritos, mas a verdade é que temos áreas metropolitanas - e veja-se o caso da do Porto, que extravasa o próprio distrito - que assumem uma densidade populacional suficiente para poderem encarar de forma autónoma algumas das competências e responsabilidades que um Governo que confia na descentralização nos pode entregar. O exemplo do passe metropolitano foi um bom exemplo, inspirado na Área Metropolitana de Lisboa (AML) e no Fernando Medina, que lançou este assunto para a discussão pública. Conseguimos perspetivar o que era um problema específico nas áreas metropolitanas que, não descurando a temática dos transportes no resto do país, é nestas áreas que tem uma importância enorme, quer do ponto de vista económico, social e ambiental. Temos outros desafios pela frente, assim queira o Governo e os autarcas, sendo certo que a montante disto tudo há a necessidade constante de mantermos a coesão entre municípios que têm uma grande heterogeneidade, em particular na Área Metropolitana do Porto (AMP).
Está satisfeito com o processo de descentralização em curso e com as novas competências atribuídas aos municípios ou parece-lhe que esta questão estará sempre minada pela escassez do envelope financeiro providenciado pelo Estado central?
FM Estou contente desde logo por este movimento de descentralização ter acontecido, o que não é tão comum assim, atendendo a que temos um Estado particularmente centralista em múltiplas funções. Claro que este movimento tem de ser feito em condições, tem de vir acompanhado de recursos financeiros necessários ao exercício dessas mesmas competências. Talvez o ponto que eu levantasse era de querer que ele seja mais ambicioso e mais rápido relativamente às áreas metropolitanas. Espero que tenhamos uma conclusão antes do verão acerca da passagem total da gestão dos meios de transporte pesados do Estado para as áreas metropolitanas. Aconteceu uma primeira fase, que foi a passagem do rodoviário, que agora vai permitir lançar os novos concursos, mas é importante que se garantam as competências de regulação, gestão e de estrutura acionista para os municípios, que têm muito mais capacidade e conhecimento para resolverem as questões que se colocam.
E acredita que as autarquias vão ter músculo financeiro para responder ao tradicional problema do défice tarifário na rede de transportes?
FM Como disse, o processo tem de vir acompanhado dos necessários instrumentos financeiros e esta é uma discussão que tem de ser feita com clareza. É possível ter sistemas de transportes lucrativos. Não é possível ter serviços de transporte público lucrativos, que cumpram as obrigações de resposta à população. Dou-lhe um exemplo: um serviço de transporte entre o Campo Grande e o Rossio é lucrativo, mas isso não é um transporte público, porque não tem a dimensão pública. Porque isso implica cumprir horários aos sábados, à noite, implica ligar todas as freguesias aos hospitais da cidade. No fundo, quando asseguro linhas que não são lucrativas. O que sabemos um pouco por essa Europa fora é que os sistemas que funcionam são os que têm 40 a 50% de receitas extra-bilheteira. E para um sistema funcionar bem necessita de ter receitas complementares. O grave erro que tivemos no país durante anos foi achar que podíamos ter empresas de transportes que fossem financeiramente equilibradas ou superavitárias ou sem terem compensações. Isso não acontece em nenhum lado. Vamos falar com verdade e com clareza: precisamos de ter bons transportes coletivos. A área da mobilidade, até em termos ambientais, é seguramente aquela em que estamos mais atrasados, é uma área crítica do ponto de vista da competitividade do território. Vamos ver: quantas horas se perdem todos os dias no trânsito nas áreas metropolitanas? Isto tem um valor económico enorme. Quanto é que se perde do ponto de vista da igualdade social? Porque sabemos hoje que os maiores utilizadores do transporte individual não são os mais abastados, mas as classes trabalhadoras que não têm alternativa consistente e vivem num sítio e trabalham noutro. Passada esta primeira etapa do passe único, que foi um salto extraordinário na unificação dos sistemas e no incentivo ao transporte coletivo, e também como instrumento de correção de injustiças sociais muito graves (entre as classes médias e médias baixas havia muitos utentes que estavam a utilizar a viatura própria porque economicamente era mais rentável), mas dizia, finda esta fase, estamos no período de discutir o comando dos meios de transporte e associado a isso têm de vir os envelopes financeiros.
O Eduardo Vítor partilha desta visão do Fernando Medina de que o Estado deve ter uma influência cada vez menor na gestão dos sistemas de mobilidade?
EV Não tenho dúvida nenhuma de que a descentralização das responsabilidades tem de evoluir no sentido da metropolitanização. E isso aplica-se ao que já foi feito no passe único, mas também, por exemplo, à gestão da STCP, da intermunicipalização da empresa. E aplica-se também à gestão e detenção dos comboios suburbanos. Porque só faz sentido pensar na mobilidade "lato senso" se conseguirmos articular de forma local as respostas globais. Estamos perante um novo paradigma e não podemos pensar como há dez anos. Desde as autárquicas de 2017 e do lançamento das prioridades da Cimeira de Sintra, aquilo que reconhecemos é que estamos perante um novo tempo no poder local, um novo paradigma para as áreas metropolitanas, em que os municípios têm de assumir as suas responsabilidades do ponto de vista financeiro, mas em que também temos de ser coerentes. Porque se dissemos outrora que podíamos gerir melhor e de forma mais sustentável, agora temos oportunidade de o demonstrar. Julgo que até ao momento temo-lo feito.
FM Deixe-me só falar um pouco da ferrovia e dos comboios suburbanos, porque é absolutamente critico que essa gestão acionista passe para as áreas metropolitanas. No caso de Lisboa, do que estamos a falar é gerir os meios da ferrovia, em articulação com os barcos que fazem a travessia do Tejo, também com a operação do metro. Só a gestão integrada destes meios pesados é que nos vai permitir completar a espinha dorsal do sistema de mobilidade. O Porto nesta área está mais avançado, porque o metro do Porto estruturou melhor a situação, mas em qualquer caso a integração dos meios pesados é um caminho que devemos discutir. Não é fácil. Sempre que falamos de centralismo isso significa uma coisa: que quem tem poder não o larga com facilidade. Mas creio que hoje existe uma opinião convergente entre as duas áreas metropolitanas e o Governo sobre o que é essencial fazer.
Um dos maiores receios relacionados com o passe único era o de que o sistema de transportes não aguentasse o aumento de pressão. Isso está a ser visível sobretudo na Grande Lisboa, mas também no Porto, no caso do metro. A medida não deveria ter sido lançada apenas quando fossem acauteladas estas questões?
FM Teríamos proposto e feito tudo exatamente da mesma maneira. Primeiro, a oferta esta a aumentar em vários operadores. A Carris, que é um elemento estruturante, está a aumentar a oferta com a chegada de autocarros que, no final deste ano, significará um terço a mais da frota existente. O metro de Lisboa hoje está com muito menos carruagens paradas, os barcos, enfim, estão numa situação mais difícil porque a chegada do primeiros dos dez encomendados ainda demorará e sobre a CP há aqui um desafio mais importante a ser travado. Agora a questão é esta: se nós não tínhamos um sistema unificado, acessível e que não discriminasse as pessoas em função do meio de transporte, não iríamos ter procura em determinados meios e quando fôssemos discutir os investimentos diziam: "Investimento para quê se não têm procura?" Este foi o problema do transporte coletivo durante décadas no país. Foi-se reprimindo a procura, abdicando de instrumentos que mitigassem o primado do automóvel. Mas agora nós temos uma procura muito importante. Que está a revelar-se em sítios onde a injustiça social era enorme. Na Área Metropolitana de Lisboa, chegávamos perto da entrada de Sintra e os preços dos passes eram de 70 euros para cima. Cerca de um terço da Área Metropolitana, cerca de um milhão de pessoas, tinha passes acima de 70 euros que só eram comprados por 1% das pessoas. Era impensável para quatro pessoas da mesma família pagarem esse passe. Agora há outro alerta, outra visibilidade sobre as questões da oferta e do investimento. Vamos lá resolvê-las e atacá-las.
No caso do Porto, qual é a realidade atual? O sistema está a aguentar bem o aumento na procura, sobretudo no metro?
EVR A situação é desigual. Há um crescimento de 22% em novos passes, em meses que até são atípicos, porque tivemos férias escolares em abril e maio com a Queima das Fitas, mas aquilo que sentimos foi uma prevalência do metro na intensidade de ocupação (e isso vai levar a ajustamentos evidentes e passíveis de serem feitos na rede existente) e depois o que temos vindo anotar é uma progressiva evolução da procura dos operadores privados e da própria STCP sobretudo em horas de ponta e com consequências significativas. Nos privados não se sente o efeito imediato, porque eles já viajavam quase em vazio e portanto o aumento da procura significou apenas uma ocupação de lugares. Na STCP, sobretudo no miolo urbano, não é bem assim, tem havido um reforço nos horários e nos autocarros com dois pisos e é isso que faz sentido. Mais gente no transporte público vai induzir uma resposta do transporte público. O contrário é que me parecia difícil.
Como está o processo de alargamento do passe único a outros operadores, sobretudo na periferia do Grande Porto, onde a rede de cobertura não ficou fechada?
EVR Tivemos dois casos distintos. O caso metropolitano, em que os operadores privados não tinham os validadores disponíveis e tiveram de ir ao mercado e este não conseguiu garanti-los em 15 dias. E portanto houve aí um alargamento em um mês da entrada em vigor do passe. Temos o caso concreto de uma empresa que se recusa a comprar validadores. Temos um problema. Depois há a questão das CIM à volta da AMP, que têm uma questão para resolver. Aquilo que temos de fazer entre as CIM e a AMP é não apenas os municípios reivindicarem, mas colocarem dinheiro no sistema. E os municípios da AMP decidiram que este era o momento de alocar verbas para este propósito e as demais CIM vão ter de fazer o mesmo.
Num cenário otimista, quando é que a rede estará fechada?
EVR Na AMP sempre considerámos que precisávamos até ao final do ano para resolver alguns problemas. O passe família, por exemplo, só será uma realidade quando tivermos um plano que fiscalmente seja inatacável. Porque não podemos agora de repente ter famílias numerosas em grande quantidade quando se sabe que elas não existem. Temos de ter alguma cautela. Em junho lançaremos o concurso e a obrigatoriedade dos validadores estará consignada. Faremos um "upgrade" na frota, que exigirá um investimento dos concessionários e uma comparticipação dos municípios que está avaliada em cinco milhões de euros. E isto também nos dá uma dimensão da desigualdade, porque cinco milhões de euros corresponde a uma parcela do que só Lisboa mete no sistema.
FM Deixe-me só dar um dado adicional sobre Lisboa. Nestes meses atípicos a que o Eduardo fazia referência, vendemos mais 715 mil títulos de transporte. Destes, mais de 100 mil a pessoas com mais de 65 anos. Uma das coisas que aconteceu mal a medida foi introduzida foi um rápido crescimento da procura entre os mais velhos, que viajam sobretudo fora das horas de ponta, e utilizam sobretudo capacidade instalada. Por outro lado, eram pessoas cujo direito básico à mobilidade estava cortado, que se deslocavam menos. E como também não tinham carro, tinham a sua mobilidade e cidadania limitadas. É muito bom ver que aconteceu o mesmo que aconteceu na Carris, em que há dois anos baixamos os passes para maiores de 65 anos. O que aconteceu foi que, findo esse tempo, as contas estão equilibradas. Isto é: a conta tanto batia certo com um preço alto e a transportar poucas pessoas, como bate certo com um preço mais baixo a transportar muitas mais pessoas. Do ponto de vista financeiro, a conta é equilibrada, do ponto de vista social os ganhos são incomensuravelmente maiores.
Olhando para o esforço financeiro feito - e não foi do outro mundo - e para a enorme adesão ao passe único, apetece perguntar: por que é que isto não foi feito antes?
EV Eu tenho uma visão estelar do assunto. Juntaram-se várias estrelas alinhadas, entre as quais um primeiro-ministro que sentia bem o problema. Com uma medida não apenas ligada ao transporte público, mas uma visão de cidade sustentável e inteligente, com uma enorme componente social. E depois houve duas áreas metropolitanas que entenderam que se o problema é metropolitano faria sentido que dialogassem.
O alinhamento partidário favoreceu?
EV Por acaso julgo que não foi decisivo. Houve sim um alinhamento de estratégias e conceitos. E julgo poder dizer isto sem nenhuma auto-estima elevada, houve sobretudo uma geração de autarcas que têm uma visão sobre a cidade e o país e de economia moderna e sustentável e não predatória. E lembro que vínhamos de um tempo em que o paradigma era bem diferente. Mas conseguiu-se viabilizar num curto espaço de tempo aquilo que em 20 anos não tinha sido concretizado.
FM Não vê nenhum político a propor fazer um inquérito ou campanha para acabar com o passe único. No dia em que alguém pensasse numa coisa dessas ia ter a vida dificultada, porque há um ganho evidente. Uma das razões por esta medida não ter sido feita antes tem que ver com a questão do centralismo. Até há pouco tempo todo o sistema de transportes das áreas metropolitanas era gerido pelo Estado Central, o que no caso de Lisboa era uma aberração. Porque quem determinava as linhas da Carris era uma companhia detida 100% pelo Estado cuja administração não ligava nada à Câmara de Lisboa e que reportava a um secretário de Estado que, com franqueza, tinha como ultimo ponto da lista de prioridades decidir sobre linhas de transporte na cidade de Lisboa. Chegámos a ter um período em que foi o próprio Estado que, no caso do metro e da Carris, retirou-os do sistema integrado porque não concordava com a distribuição de receitas pelos privados. Chegámos a este ponto de absurdo. Olhando para o presente, tivemos foi duas áreas metropolitanas que chegaram à conclusão que não podiam resolver os seus problemas sozinhas. Lisboa não consegue resolver os seus problemas de mobilidade se não resolver os problemas de Sintra, Cascais, Amadora, Seixal, e por aí fora. Porque os movimentos pendulares são muito fortes e ou se resolve em conjunto ou não há solução. O Porto tinha uma situação análoga. E depois houve uma visão de uma geração de autarcas. Uma das questões que leva à sua pergunta é que quando se foram fazer os custos desta medida, de norte a sul, constatámos que o valor era muito mais baixo do que estávamos à espera. E por que razão? Porque as pessoas já não andavam muito de transporte coletivo. Em Lisboa, por exemplo, um terço dos habitantes não o fazia.
No vosso entendimento, o atual processo de descentralização pode substituir a regionalização, pelo menos nos moldes clássicos em que foi pensada? E a regionalização deve ou não constar no programa do PS candidato às legislativas?
FM Este modelo de descentralização não exclui, mas complementa a regionalização. Eu sou um acérrimo defensor da regionalização desde que o debate se colocou pela primeira vez. E cada vez mais me convenço da sua importância. E portanto deve constar do programa eleitoral do PS. Mas convém termos em conta a realidade do país: tem de haver um modelo e um entendimento entre os partidos e também a presidência da República sobre a matéria [parêntesis - é bom reconhecer que o atual presidente da República foi o líder do PSD à época em que foi blindado o avanço da regionalização com a inscrição na Constituição da necessidade do referendo, fecha parêntesis...]
E parece-lhe que o pensamento político do presidente evoluiu?
FM Bom, é preciso falar com ele e perceber, porque temos de ser realistas sobre quais são as condições para o processo avançar. Na minha opinião ele deve avançar.
E já no próximo ciclo legislativo?
FM Deve avançar na próxima legislatura, o momento do ato eleitoral deve ser visto com prudência para não comprometer a eficácia da regionalização. A qual não colide nada com a descentralização dos municípios, nem com aquilo que os municípios naturalmente já estão a subir em delegação de competências e por isso os dois processos vão perfeitamente a par. Do que estamos a falar é da retirada de competências do nível a que está. Hoje, o Estado central exerce competências verdadeiramente absurdas. A regionalização deve avançar sem medos. Agora, há quem não queira, e por isso temos de moderar o nosso entusiasmo. É preciso porque não foi aprovada. Agora, há um segundo dossiê que eu trataria de forma diferenciada, que é o facto de estarmos no tempo de dotar as duas áreas metropolitanas de uma legitimidade própria. Hoje são associações de municípios que estão a atingir um grau de maturidade no seu trabalho conjunto elevado. Uma das vantagens negociais no caso do passe único foi termos chegado ao Governo e dito: "Os municípios vão investir x no sistema de transportes". No caso de Lisboa, sozinha, estamos a colocar 30 a 40 milhões por ano na Carris e todos os municípios concordaram colocar por ano cerca de 30 milhões no sistema de transportes para a área metropolitana. Houve unanimidade interpartidária. Quando chegamos à negociação temos outra autoridade. Quem já esta neste estado tão elevado deve dar o passo em frente que é assegurar a legitimidade própria das áreas metropolitanas. A eleição direta dos órgãos das áreas metropolitanas deve por isso avançar.
EV Eu até iria um pouco mais longe. O trabalho que está a ser feito no âmbito deste processo de assunção de responsabilidades nos transportes é um grande contributo para que num futuro próximo esse debate esteja já suficientemente enraizado na sociedade portuguesa. É bom não esquecer que no referendo as pessoas olhavam para a regionalização sem poderem materializar muito os seus efeitos. E por isso foram muito seduzidas injustamente por aquelas lógicas de que significaria mais um estrato do poder político e de emprego. Hoje as pessoas conseguem perceber que a regionalização não é apenas uma reorganização do Estado, mas uma reforma que se traduz na melhoria da qualidade de vida, mas também no reforço da coesão do próprio país. Quando se referendou, era regionalizar para retalhar, para dividir ainda mais. E o que temos mostrado é que só há virtualidades em partirmos da base local para reorganizar recursos. A legitimidade eleitoral fará com que as áreas metropolitanas também possam avançar de uma forma mais forte.
Não temem que essas várias camadas de poder possam degenerar numa batalha pelo próprio exercício do poder e que haja muita gente a regatear fundos?
EV Nada será pior do que o hipercentralismo que tanto se sente em Lisboa como em Gaia. O que defendemos é que cada coisa tem de estar no seu estado próprio.
As áreas metropolitanas devem ter um papel mais ativo na gestão dos fundos do próximo quadro comunitário de apoio?
FM A situação das duas áreas metropolitanas não é a mesma, dado que Lisboa está toda numa zona que praticamente não tem acesso a fundos comunitários, em virtude dos rendimentos per capita. De qualquer forma, defendemos que a autoridade metropolitana deve ser a gestora dos fundos comunitários que lhe couberem, sendo retirada essa competência à CCDR de Lisboa e Vale do Tejo.
EV Aliás, foi uma das propostas que ficaram inscritas na Cimeira de Sintra. Tem uma enorme vantagem porque permite atender às problemáticas dentro da região, e deixar a CCDR ocupada com o levantamento e o diagnóstico do resto das regiões, deixando às áreas metropolitanas o papel de gestão desse território. Problemas diferentes e territórios diferentes devem ser tratados de forma diferente.
Fernando Medina, como é que um portuense se tem dado a governar Lisboa?
FM Tenho-me dado bem, e espero que os eleitores também achem isso. Vamos ver: a história da cidade de Lisboa é muito feita com pessoas que vêm de outros locais, que fazem a sua vida, casam, têm descendência, etc.. A minha história é bastante lisboeta desse ponto de vista. Formei-me no Porto e no último ano de faculdade encontrei emprego em Lisboa, fui para Lisboa trabalhar, constituí família, surgiram os filhos, os meus dois filhos já são alfacinhas de gema. Por isso é um percurso muito natural. Claro que no início muitos faziam essa interrogação. E eu próprio também.
Sentiu algum tipo de obstáculo natural ao fazer esse percurso, foi vítima de alguma forma da dicotomia Porto-Lisboa?
FM Não, isso aliás foi dos aspetos mais interessantes. Quando se está no Porto vê-se mais uma dicotomia e quando se está em Lisboa não se vê nenhuma dicotomia. Não há nenhuma dicotomia Porto-Lisboa vista a partir de Lisboa. E uma coisa que tem sido importante neste percurso que temos feito em conjunto é que para nós o diálogo tem sido extremamente fácil. Não me lembro de, em nenhum documento, termos demorado mais de cinco minutos a pôr-nos de acordo sobre o que era importante.
Os machados de guerra eram imaginários?
FM Não havia. Aliás, havia uma convicção muito profunda de que só juntando forças é que conseguiríamos vencer muito do centralismo que obstaculizava a construção do projeto. Porque os problemas são comuns às duas áreas metropolitanas. Cresceram muito, viram a sua população crescer fora dos centros, e tinham sistemas de mobilidade coletiva muito incipientes. Tem sido um trabalho muito fácil e muito bom. E muito partilhado.
Reconheceu, há tempos, que o centralismo do Terreiro do Paço não tem nada que ver com o centralismo dos Paços do Concelho. No fundo, Lisboa também é vítima do centralismo?
FM Sem dúvida, em igual medida e em alguns aspetos em maior medida. Porque parecendo estar perto pode ser uma vantagem, depois percebe-se no quotidiano que afinal não é vantagem nenhuma e às vezes até é mais prejudicial. O poder existe e a questão é quem o exerce. A crítica maior que posso fazer sobre o processo de descentralização é que ele não foi longe demais. Pela forma como a negociação foi conduzida, entre o Governo e a Associação Nacional de Municípios, em que, no fundo, depois vinga o menor denominador comum entre municípios que têm níveis de aceitação de competências muito diferente.
Preocupa-vos que as duas áreas metropolitanas (sobretudo as cidades do Porto e de Lisboa) estejam tão dependentes das receitas do turismo ou esse é um bom problema, atendendo aos resultados obtidos?
EV Estou persuadido pelos dados que nos dizem que não atingimos nenhum limite e não estamos em nenhum processo de pré-colapso e excessivamente dependentes do turismo. Precisamos de regular algumas situações no alojamento local, temos ainda capacidade de acolher a construção de mais alguns hotéis, sobretudo diferenciados.
FM O sentido da transformação é claramente positivo. É um processo que não é unívoco, mas se vamos fazer o balanço... eu sou o primeiro presidente da Câmara de Lisboa eleito que não tinha no centro das suas preocupações a reabilitação da Baixa. Agora, temos de adaptar a cidade ao turismo que temos, e as pressões são muitas. Mais turistas significa mais carga sobre transportes. Pressão sobre a habitação. Mas é preciso lembrar que o turismo na cidade de Lisboa, só na cidade, tem um valor global de dez mil milhões de euros por ano. Isto significa quatro Auto Europa, seis vezes o valor total do setor do calçado. É disto que estamos a falar. Importância económica e do emprego. Ganhos diretos e indiretos. A nossa tarefa tem de ser cuidar de manter a atratividade da cidade e dos efeitos negativos que o setor traz. Mas sem medo. Eu reajo muito fortemente perante as críticas epidérmicas de que tudo está a mudar, a ficar desvirtuado. Há coisas que estão a mudar de facto, mas estava bem antes? Devemos fazer esta gestão da sustentabilidade do turismo - de criar riqueza e de se manter no ambiente em que se insere.
Os autarcas de Gaia e de Lisboa serão recandidatos a um novo mandato?
EV Essa questão está perfeitamente estabelecida. Há um programa que foi aprovado em 2013, que estava definido como sendo de estabilização económico-financeira do município que estava à beira da bancarrota. Este mandato tem sido o de lançamento de alguns projetos infraestruturantes e estruturantes do ponto de vista da inclusão social e o normal é que o ciclo termine com o próprio limite de mandatos. Se dependesse de mim, faria dois mandatos de cinco anos cada um. Mas neste contexto é expectável que seja candidato.
FM Se depender da minha vontade naturalmente sim, e pelo trabalho que estamos a fazer na cidade de Lisboa, mas também por este nova frente de trabalho em conjunto nas áreas metropolitanas. Tem sido algo inédito do ponto de vista da história política portuguesa. Não havia esta capacidade de entendimento e de trabalho conjunto. Hoje a forma como trabalhamos tem sido extraordinária. E só estamos no início. O que estamos a fazer é muito sólido e muito importante. Começamos um caminho que é essencial que não seja interrompido.
