
André Gomes/JN
"Cheguei ao ponto de não ter pão, nem cereais, nem leite para dar aos meus netos. Não criei os meus filhos assim". Faz precisamente hoje um mês que "Sara" regressou a Portugal.
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Foi costureira, depois dona de casa, criou os filhos em Maturín, na Venezuela, mas agora não tinha mais comida para alimentar a família. "Fui gastando todas as poupanças, vendendo o meu ouro, tudo o que tinha, para comer, e mal. Há dois anos que compro o arroz no mercado negro, a um alto preço. O salário mínimo é de 1800 bolívares soberanos (pouco mais de 20 euros) e um quilo de cebolas estava a custar mil".
Fechou a casa, a que já não conta regressar, e esconde o nome porque tem medo da repressão política que possa atingir a família que ainda lá está, à espera de documentos para viajar para Portugal.
Na República Bolivariana depauperada de Nicolás Maduro vive cerca de meio milhão de portugueses. Os que regressaram, cerca de oito mil em dois anos - a maioria para a Madeira (seis mil) -, fogem à carência de comida, medicamentos e segurança.
"Sara" está a recomeçar, aos 72 anos, de olhos perdidos nos fartos corredores dos supermercados que vão deixar os netos "felizes". A nora ainda lá está, telefona. "Está a esticar o leite" há uma semana. Conta os cereais, divide-os por duas taças para alimentar os filhos. "Eles estão sempre a pedir coisas que não lhes podemos dar. Faltam os bens essenciais e está cada vez pior. Os soldos não dão para manter uma só pessoa, quanto mais uma família". Veio, mas o coração ficou lá.
Aos quatro anos, José Leite foi viver com os pais para a Venezuela. Regressou em fevereiro, aos 53. O pai deixou-lhe uma empresa de pichelaria. "É deixar tudo e começar outra vez de novo. Dói". Chora. Repete a frase e a ideia de que sempre pensou regressar, mas não assim, não agora. As filhas emigraram, uma para os EUA, outra para Inglaterra. José veio para "casa", sem nada. Há meses que não podia manter a empresa, por falta de materiais. Foi assaltado várias vezes. Não saía à rua. "Perdi dez quilos e, quando cheguei, a minha mãe quase não me reconheceu". Está a trabalhar na Simoldes, em Oliveira de Azeméis. A mulher, venezuelana, ainda não tem emprego, não consegue registar-se na Segurança Social, apesar de estarem casados há 30 anos. "Se estivesse bom, como dizem, ficava lá, foi por isso que trabalhei, mas nem o dinheiro me deixam tirar do banco".
O drama das reformas que não vêm
Foi Alfredo Amaral quem deu a mão a José e lhe arranjou trabalho na fábrica. Está no turno da noite, para ganhar mais algum. Alfredo, 64 anos, achava que ia ser o último a deixar a Venezuela - como se enganou. "Graças a Deus, não comprei lá casa, se não tinha de lá ficar tudo. Há muita gente que tem lá os negócios e está a aguentar. Qual vai ser o futuro deles lá? E aqui?"
Trabalhou como técnico fabril. Descontou 38 anos para o sistema venezuelano e agora tem medo do tempo - que lhe falta - para receber uma pensão digna em Portugal. "Trabalhei duríssimo. Tenho lá as minhas cotizações e quem é que me reconhece isso? O Governo português deveria pressionar, se há acordos internacionais, para termos pelo menos as nossas pensões. Encontrar uma forma de recebermos as nossas pensões aqui, ou dar algum subsídio".
Foi presidente do clube luso Centro Marítimo da Venezuela. Hoje, aponta para os móveis e diz: "Isto foi-me tudo oferecido e eu nunca tive necessidade disso. Estou a adaptar-me a outra vida. Como eu, milhares que estão a passar o mesmo. Já não havia dinheiro para nada. Foi um cunhado meu, na Holanda, quem me pagou as viagens. Tenho dívidas que tenho de pagar no futuro".
Regressar para sobreviver
Cândido de Andrade fugiu à guerra em 1967. Emigrou. Passou anos sem férias e foi um dos empresários mais bem sucedidos da América Latina. Voltou há um ano, aconselhado pelo médico, para que tratasse o cancro que lhe foi diagnosticado fora do país. Foi uma questão de sobrevivência. "Gostaria de viver um pouco mais para ver os meus filhos. Oxalá Portugal lhes ofereça um pouco mais". Os filhos estão ainda em Caracas, a tomar conta do que resta de 50 anos de trabalho - duas empresas, com uns 30 trabalhadores, alguns com 40 anos de casa.
"Muitos emigrantes não têm vindo por vergonha, para ver se se aguentam. Antes, era vir aqui passar férias, ter amigos. Agora, é chegar sem nada, com uma mão atrás e outra à frente. Tragédias. É muito triste recomeçar a vida aos 60 e tal anos". O comendador - título de reconhecimento pelo trabalho junto da comunidade portuguesa - diz-se um "emigrante mais", angustiado com os pedidos de ajuda que recebe todas as semanas de "gente em estado crítico". Garante que a maioria da massa emigrante já não ganha para alimentar-se.
A chegada destes emigrantes já não é uma festa de verão, é um desfile de infortúnios. "Temos de dar as mãos a essas pessoas. Contribuíram para o desenvolvimento de Portugal, foram uma grande fonte de ingresso. O que seria uma grande ajuda era minimizar as burocracias. Não brinquem com o tempo deles", apela aos governantes.
Do outro lado do mar ficou a vida inteira
"Há a ideia de que todos fizeram dinheiro, mas não é verdade. Muitos portugueses vivem lá na favela", conta Christian Höhn, responsável pela Venexos, uma organização não-governamental que envia todas as semanas entre 100 e 200 quilos de comida e medicamentos para o outro lado do Atlântico. "Há muitos portugueses lá a viver de ajuda humanitária. Acham que as pessoas estão a sair de Caracas a pé para Lima, no Peru, que são 40 dias a pé, porque querem?".
No país que acreditavam ser "o melhor do mundo", os portugueses deixaram casa, empresas, dinheiro e sangue. "A Venezuela já não é para nós, já não é para os nossos dias". "Sara" ainda não sabe que, cá, dois euros chegam para comprar um saco de pão. Ainda não se habituou ao frio, à desesperada espera pelos netos. Porque ficou lá "uma vida inteira".
Consulados
Portugal isentou os portugueses e lusodescendentes do pagamento de emolumentos nos serviços consulares da Venezuela. Desde 2016, deixou de arrecadar "mais de dez milhões de euros por via desta decisão", calcula a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas. A medida será reavaliada a cada dez meses.
Apoio médico
Estado apoiou um projeto de assistência que prevê a realização de consultas médicas gratuitas a cidadãos portugueses carenciados, estando em funcionamento unidades deste serviço em cinco pontos da Venezuela - Caracas, Barcelona, Barquisimeto, Valencia e Puerto Ordaz.
Ajuda na Madeira
O Instituto de Emprego da Madeira investiu 900 mil euros em programas de emprego e de empreendedorismo para luso-venezuelanos regressados. O Governo Regional calcula em 300% o aumento de inscritos ativos desde 2016.
À espera de casa
São 344 as famílias luso-venezuelanas inscritas na Investimentos Habitacionais da Madeira. A solução para 62 delas passa por um empreendimento em Machico, onde vão ter renda apoiada através do Programa Porta de Entrada.
Mil euros de apoio anual
Aos cidadãos carenciados na Venezuela, pelo governo português, desde 2015, ano em que a situação do país se agravou, afetando muitos dos que integram a grande comunidade portuguesa.
