Bruno Sepodes, farmacologista que integra o comité de peritos europeu, garante que processo cumpriu todos os critérios, culminando numa "opinião mais robusta".
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Vice-presidente do Comité dos Medicamentos de Uso Humano que decide na segunda-feira o futuro da vacina da Pfizer/BioNTech, Bruno Sepodes sublinha que todos os procedimentos foram cumpridos. E que, perante resultados robustos, "seria até antiético" privar os cidadãos de uma alternativa terapêutica, explica, em entrevista por escrito ao JN, o farmacologista e professor da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa
No próximo dia 21 preparamo-nos para ter a primeira autorização de introdução de vacina contra a covid-19 no mercado. Aprovação essa em timings nunca antes vistos. Saltaram-se etapas? Encurtaram-se fases? Ou sobrepuseram-se fases face à emergência de saúde pública que vivemos?
No próximo dia 21 de dezembro o Comité dos Medicamentos de Uso Humano (CHMP) terá mais uma reunião extraordinária (que se espera ser a última para este medicamento) exclusivamente dedicada à primeira vacina que conseguirá muito possivelmente obter a primeira recomendação para Autorização de Introdução no Mercado (AIM). O CHMP concede uma opinião positiva e é depois a Comissão Europeia (CE) a responsável para AIM, pelo que no dia 23 de dezembro, se tudo correr bem, a CE poderá estar em condições de emitir esta autorização que é imediatamente válida em todos os Estados-membros da União Europeia.
A razão para os timings desta avaliação não terem precedentes é que eles resultam de uma adaptação do sistema regulamentar à situação excecional e de emergência que vivemos. Tal como aconteceu para a AIM do remdesivir, a Agência Europeia do Medicamento (EMA) fez uso de diferentes ferramentas regulamentares para garantir que seríamos capazes de dar resposta ao desafio que uma situação destas representa.
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Não se saltaram etapas nem se facilitaram os procedimentos, reduzindo as exigências. Em vez disso, ativaram-se medidas específicas que faziam já parte do plano de resposta da EMA às ameaças graves à saúde pública, como a que estamos a viver, fruto da experiência adquirida com a pandemia causada pelo vírus influenza H1N1 da gripe, e com os surtos de Ébola em África (em especial entre 2014 e 2016).
Uma destas medidas permitiu ativar grupos específicos de peritos (de entre os cerca de 4000 peritos que constituem a bolsa de peritos da EMA) na chamada Emergency Task Force que permitiu - paralelamente aos procedimentos normais -, discutir e antecipar problemas e limitações, tentando proativamente encontrar soluções que permitissem à empresa ultrapassar estas barreiras. Tudo isto decorreu com a colaboração de centenas de peritos europeus, que em cada Estado-membro integraram as informações que iam chegando relativamente ao desenvolvimento farmacêutico (fabrico de um medicamento com qualidade nos padrões europeus), ao desenvolvimento não-clínico (caracterização farmacológica e toxicológica em animais) e ao desenvolvimento clínico (o resultado dos ensaios clínicos que, entretanto, foram ficando disponíveis).
Toda esta análise foi considerada e tida em conta nas discussões do CHMP. Importa não esquecer que, tal como acontecera para o remdesivir, se ativou a hipótese de rolling review [revisão em contínuo] em que as empresas podem ir submetendo os dados que normalmente constituem um dossier de AIM, à medida que os vão obtendo. Com este tipo excecional de procedimento, recebem assim feedback imediato e têm a chance de resolver problemas que poderiam mais tarde ser um impedimento à comercialização.
Nada disto coloca em causa a segurança de utilização desta vacina ou de qualquer medicamento aprovado desta forma. Muito pelo contrário, permite ter uma opinião científica mais robusta e uma resposta regulamentar mais estruturada perante uma situação de emergência, garantindo ao mesmo tempo que temos ferramentas regulamentares para atuar e lidar com as incertezas que ainda possam existir pós-comercialização.
Muitos se questionam como podemos confiar na aprovação de uma vacina quando ainda decorrem ensaios de nível II e III. Pode explicar?
O desenvolvimento de medicamentos deixou há alguns anos de seguir o paradigma de antigamente em que determinadas fases antecederiam sempre outras. Hoje, tudo se processa mais em paralelo e há questões que permitem garantir a segurança dos doentes envolvidos nesses ensaios que são resolvidas antes da primeira administração no humano. Depois seguem-se ensaios de Fase II e Fase III, desenvolvidos muitas vezes em paralelo, para responder a diferentes perguntas investigacionais e dependendo também da gravidade da doença e/ou da ausência de alternativas terapêuticas disponíveis.
Estamos, portanto, a viver uma dessas situações. Como só agora o assunto nos toca a todos, é normal que se ache que esta situação é nova. Mas se falarem com a comunidade de pessoas que vivem com uma doença rara ou até na área da oncologia, é muito comum esta abordagem no desenvolvimento de novas abordagens terapêuticas. Além disso, é normal decorrerem ensaios clínicos mesmo após aprovação de um medicamento - como vai também acontecer com estas vacinas que serão aprovadas.
No entanto, quando os resultados preliminares são suficientemente robustos para se tomar uma decisão, seria até antiético privar os cidadãos de uma determinada alternativa terapêutica ou profilática essencial havendo já evidências de eficácia e segurança. Mais uma vez, estamos nesta situação de emergência que em tudo justifica as opções que tomámos e temos de acreditar na robustez e maturidade de um sistema europeu do medicamento que desde 1965 luta por assegurar a proteção de todos os cidadãos.
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O "rolling review" adotado encurtou em quanto tempo a aprovação? Qual o tempo médio normal para aprovação de uma vacina/medicamento para uso humano e qual o verificado especificamente nesta vacina?
A avaliação de um pedido de AIM para um novo medicamento leva até 210 dias "ativos". Este tempo de avaliação ativo é o tempo gasto pelos peritos da EMA para avaliar a documentação fornecida por determinada empresa para suportar o pedido de AIM. Este período de 210 dias pode ser interrompido por uma ou duas "paragens de relógio" durante as quais a empresa prepara as respostas para as questões levantadas pelo CHMP. A duração máxima de um ponto de paragem depende do tempo que a empresa pensa que levará a responder, mas é em geral acordada com o CHMP.
Globalmente, a avaliação de um novo medicamento geralmente dura cerca de um ano, podendo ser encurtado para situações específicas em que há avaliações aceleradas devido à necessidade específica numa área terapêutica para a qual o desenvolvimento desse medicamento é essencial.
O início do "rolling review" significa que o CHMP começou a avaliar o primeiro conjunto de dados disponíveis sobre a vacina, que provêm de estudos laboratoriais (dados não clínicos). Isto não significa que ainda se possa chegar a uma conclusão sobre a segurança e a eficácia da vacina, uma vez que grande parte dos elementos de prova ainda estão por apresentar ao CHMP.
O "rolling review" continua até que haja documentação suficiente para apoiar um pedido formal de AIM. E nessa altura dá entrada o pedido oficial de AIM. A EMA completa então a avaliação sempre de acordo com os padrões habituais de qualidade, segurança e eficácia.
Neste contexto, não é estranho que o "rolling review" encurte o tempo necessário para aprovação. Estamos perante uma emergência e este é um dos mecanismos de resposta a esta emergência, permitindo recrutar centenas de peritos europeus que de forma focada se ocuparam exclusivamente da avaliação deste produto.
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Ao mesmo tempo, e porque o trabalho não é só feito pelas autoridades regulamentares, as empresas também se comprometem a dar resposta aos apertados calendários acordados, fornecendo muitas vezes respostas a longas listas de perguntas em menos de 24 horas. Penso que muitos não imaginam as horas sem dormir e as horas de trabalho que estão por detrás deste acelerar de decisões. Porque a exigência e rigor se mantêm, apenas se vai avaliando mais cedo algumas partes que obrigatoriamente constituem o dossier.
O "rolling review" da primeira vacina a ser aprovada começou dia 6 de outubro de 2020, data da primeira submissão de dados por parte da empresa. A submissão formal do pedido de AIM por parte da empresa deu-se a 30 de novembro, pelo que se tudo correr como o esperado dia 21 de dezembro poderemos ter concluído o pedido de AIM.
Embora pareça que de 210 dias o procedimento foi encurtado para 21 dias, tem de ser considerado o período de avaliação desde 6 de outubro sem que tivessem ocorrido quaisquer interrupções de duração significativa. Foi mais um teste de força à capacidade do sistema europeu usar estas ferramentas regulamentares, já que nos socorremos exatamente dos mesmos mecanismos para a aprovação do remdesivir.
No caso específico desta primeira vacina em avaliação, importa salientar que temos mantido uma colaboração constante com a Health Canada, a Swissmedic, a FDA, a PMDA do Japão, com a autoridade regulamentar Israelita e com a OMS. São parceiros que contribuem para a discussão sem haver um espírito de competição, mas antes um espírito de colaboração de que todos beneficiam e em que todos aprendemos com a experiência um dos outros.
Relativamente às reações adversas, fica uma sensação de caminho no desconhecido. As reações reportadas até agora garantem a segurança da vacina?
A informação completa quanto ao perfil de reações adversas, à semelhança do que acontece para qualquer medicamento, só é conhecido durante a vida do medicamento após comercialização. Aquilo que chama de "caminho no desconhecido" é o que nós chamamos de incertezas e nem todas as incertezas se traduzem necessariamente em riscos.
Essas incertezas fazem parte da ponderação final que nos permite decidir se a relação benefício-risco é positiva ou negativa. É um ciclo que nunca se fecha e a relação entre os benefícios e os riscos é constantemente avaliada, em especial nas situações em que a comercialização tem condições associadas, como estudos pós-comercialização.
Não há, até ao momento, reações adversas que fujam ao padrão esperado para uma vacina deste tipo e haverá um plano de gestão do risco apropriado para monitorizar as que, entretanto, forem sendo detetadas, à semelhança do que já normalmente é feito para todos os medicamentos inovadores através dos robustos sistemas de farmacovigilância existentes na União Europeia.
A autorização, sendo dada no dia 21, é condicional. Pode, por isso, ser levantada caso não haja um equilíbrio positivo benefícios-riscos? Situação, por exemplo, em análise pela própria EMA para o remdesivir.
A existência de uma AIM Condicional é uma mais-valia do sistema europeu e um garante da segurança de utilização para os cidadãos. Na Europa, a nossa legislação prevê a existência de uma AIM Condicional que é utilizada para acelerar a aprovação da avaliação de um possível novo medicamento durante emergências de saúde pública com o intuito de acelerar o acesso ao mesmo e salvar vidas.
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Poder-se-ia ter escolhido o caminho da "utilização de emergência" seguido por alguns países (como no Reino Unido, entre outros), mas uma autorização deste tipo não é uma verdadeira AIM.
Foi uma escolha consciente escolher a via da AIM Condicional já que esta permite assegurar um plano robusto de gestão do risco e de monitorização da segurança de utilização, um quadro jurídico claro para a avaliação de dados de eficácia que vão continuar a emergir, um controlo continuado da qualidade do produto ao nível do fabrico (incluindo controlo oficial dos lotes libertados para vacinação), a existência de informação completa de armazenamento e utilização do produto, a existência de um plano de desenvolvimento para uso pediátrico e, muito importante, uma autorização condicional permite que existam obrigações e condições específicas pós-AIM juridicamente vinculativas que têm de ser satisfeitas pela empresa para o produto poder continuar a ser comercializado.
A AIM Condicional resulta numa autorização válida em toda a Europa, permitindo que todos os Estados-membros - grandes ou pequenos - beneficiem do trabalho conjunto realizado a nível da União Europeia. Uma AIM Condicional assegura que nenhum Estado-membro é deixado para trás, permitindo que as campanhas de vacinação em massa comecem rapidamente.
Uma AIM condicional supõe assim uma avaliação constante da relação benefício-risco, à semelhança do que acontece com o remdesivir e tantas outras substâncias ativas. No caso da relação benefício-risco se tornar negativa, a AIM condicional é suspensa. Em determinado momento, uma vez reunida mais informação, a AIM condicional poder-se-á tornar definitiva sendo ainda assim avaliada a relação benefício-risco constantemente através dos robustos sistemas de farmacovigilância que temos disponíveis.
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A monitorização pós-autorização será reforçada. De que forma? Haverá uma plataforma europeia centralizada criada especificamente para reporte de reações adversas?
A monitorização pós-autorização será reforçada, mas também o seria e é frequentemente para qualquer outro medicamento aprovado por AIM Condicional. O Comité de Farmacovigilância e Avaliação do Risco (PRAC) e o CHMP articularão as medidas necessárias que irão certamente incluir diferentes estudos de avaliação da segurança pós-autorização e estudos de efetividade.
Não há no meu entender qualquer necessidade de plataformas europeias especificamente criadas para o efeito, já que o sistema de farmacovigilância europeu está perfeitamente capacitado para gerir esta situação. Não devemos também proativamente achar que irão surgir muitas reações adversas. É um erro pensar que esta aprovação é diferente de tantas outras que se fazem regular e mensalmente na Europa.
Tem-se falado de consentimento informado. Prevê-se a assunção de risco pelo tomador, assinando uma declaração, como por exemplo está a ser ponderado no Brasil?
Num contexto de AIM Condicional, à semelhança de tantas outras que são concedidas todos os anos, este é um problema que não se coloca. No meu entender não há qualquer justificação para tal. Os casos em que tive conhecimento da existência desse consentimento informado foram casos de utilizações especiais de emergência ou ensaios clínicos que não configuram situações de AIM como se irá verificar na Europa.
Por último, autorizada a introdução no dia 21, quais os passos seguintes até que a mesma entre em distribuição no mercado europeu?
Se tudo correr como esperado, dia 21 de dezembro o CHMP - onde estão representados todos os Estados-membros da União Europeia - deverá adotar uma opinião final no sentido de uma autorização condicional de introdução no mercado para a primeira vacina contra a infeção por covid-19. Toda a documentação segue em seguida para a Comissão Europeia onde se prepara a decisão e Estados-membros onde são feitas e validadas todas as traduções do Resumo de Características do Medicamento e Folheto Informativo.
Espera-se que este processo esteja concluído no dia 23 de dezembro, com a publicação da decisão da Comissão Europeia e do relatório de avaliação completo (European Public Assessment Report), este no site da EMA. Com isto podem então os Estados-membros desencadear os procedimentos nacionais desenhados e preparados para a administração de vacinas à população.