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"...Os putos, os putos / São como índios, capitães da malta / Os putos, os putos". Parece que a voz do falecido Carlos do Carmo, gigante do fado, ecoa por estes dias nas ruas das grandes cidades portuguesas, onde milhares de jovens peregrinos têm chegado nas vésperas do arranque da Jornada Mundial da Juventude, que ocupa Lisboa e arredores entre terça-feira e domingo. No centro do Porto, não tem havido canto onde não se vejam t-shirts e bandeiras a exibir o conjunto cromático que desde há vários dias tem tomado conta do país (ponto positivo: pelo menos não causa estranheza, porque é o mesmo que invade as janelas das casas em dia de jogo da seleção).
Na capital, a um dia do início do evento, os pontos centrais da cidade, onde se ultimam os preparativos do evento, encheram-se de jovens católicos de idades e nacionalidades várias - veja aqui a fotogaleria daquilo a que chamámos uma "incursão peregrina na capital". No Parque Eduardo VII, alguns dos participantes até já guardam lugar junto ao altar-palco para garantir a melhor vista do Papa, quais Coldplay em Coimbra e Harry Styles em Algés.
Com mais de 313 mil peregrinos inscritos, várias centenas de milhares de participantes não inscritos e 32 mil voluntários a passearem-se por uma cidade com 3600 e tal arruamentos, poderia pensar-se que nem todos chegariam ao destino. E pensar-se-ia muito bem: ainda que a cerca de 140 quilómetros de Lisboa, a Diocese de Leiria-Fátima comunicou às autoridades que desconhece o paradeiro de 106 jovens que deveriam ser acolhidos em três paróquias (Azoia, Porto de Mós e Leiria). Como explica a jornalista Maria Anabela Silva, a diocese informou hoje que o caso foi reportado logo que as não comparências foram sinalizadas e que as autoridades estão a assumir as "diligências exigíveis e necessárias”. Na prática, nem dioceses nem Polícias sabem bem se os jovens, que se inscreveram na JMJ, chegaram a entrar no país ou se saíram sequer dos seus locais de origem.
E porque "vivemos numa sociedade democrática e livre", como hoje disse D. Manuel Clemente em conferência de imprensa a propósito das manifestações públicas de desagrado perante os recursos e gastos públicos que o evento envolve, o grupo "This Is Our Memorial" (Este é o nosso memorial, em português) vai lembrar o que não quer que seja esquecido. Três cartazes instalados em Lisboa, Oeiras e Loures vão recordar as mais de 4800 vítimas estimadas de abusos sexuais cometidos no seio da Igreja Católica durante os últimos 70 anos - escândalo que abalou o país e deixou a instituição sob fogo cruzado. Um fogo que, está à vista, não só não travou a realização da JMJ como também não chamuscou o evento com o memorial oficial que chegou a estar previsto: a prometida homenagem às vítimas de abusos acabou por ser adiada, não tendo presença no evento, algo que o grupo "This Is Our Memorial" entende como "encobrimento" e "silenciamento ensurdecedor" dos crimes.