Incerteza e crescimento dos extremismos têm impacto direto na saúde mental (e física) dos cidadãos. Há até novos termos a entrar no léxico clínico. Minorias são particularmente afetadas.
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Raffaello Dante, ativista trans de 42 anos, sofre de ansiedade crónica, mas a inquietude tem vindo em crescendo nos últimos meses. “Vivo diariamente a tensão e o desgaste emocional resultantes de um cenário político e social que impõe desafios enormes à minha comunidade e a outros grupos”, resume. Além da conjuntura, é a “constante sobrecarga de informação”. “Muitas noites são dominadas por insónias e pensamentos ansiogénicos, impulsionados pelas notícias e os debates agressivos a que assisto.” A esposa bem lhe diz: “Não vejas isso, é mais lixo para a tua cabeça.” Mas é difícil. Não se esquece, por exemplo, do dia em que foram conhecidos os primeiros decretos de Donald Trump, presidente dos EUA. Um deles impôs que documentos de identificação emitidos pelo Governo se baseassem apenas na “classificação biológica imutável de um indivíduo como homem ou mulher”. Nesse dia, estava sentado no sofá com a família, ficaram todos meios abananados. Quando a esposa e o enteado foram dormir, deu por ele a ver e rever tudo aquilo.
Depois, é a hostilidade crescente que vai sentindo na rua, nos serviços, numa simples ida ao médico. “Parece que as pessoas se sentem cada vez mais à vontade para espalhar o ódio.” Um aumento de agressividade que associa diretamente ao crescimento das ideologias de extrema-direita. E o medo instala-se aos poucos, teme pelo futuro do enteado, dos sobrinhos, por ele, pelos parcos direitos que a comunidade trans conquistou. “Penso muito no que vai acontecer se as leis mudarem e houver um retrocesso. Em como vou ser tratado a partir daí.” Com o tempo, aprendeu a resguardar-se: se antes se dava ao trabalho de ripostar sempre que via um comentário insultuoso nas redes, agora obriga-se a não responder. Mesmo assim, a angústia é uma presença constante no dia a dia, à noite nem se fala. Por vezes, é de tal forma ensurdecedora que só com medicação consegue adormecer.
Mónica Batalha, assistente social da Opus Diversidades (associação LGBTQI+), sente os utentes cada vez mais preocupados. “Noto medo sobretudo em relação às eleições, particularmente no caso de utentes migrantes ou com deficiência, por terem noção de que os seus direitos podem estar em risco, que as políticas de financiamento podem mudar, que a habitação acessível pode estar em risco, que pode haver cada vez mais limitações à imigração. Até diria que os sentimentos mais imediatos são a indignação e a frustração. A ansiedade surge mais quando pensam no futuro.” E aqui entra o tal clima de hostilidade, que vai crescendo à boleia dos discursos extremistas, e lhes encurta cada vez mais o caminho. “Muitas destas pessoas saíram dos países de origem por serem vítimas de violência, nalguns casos de tentativas de homicídio, e portanto regressar não é opção. A questão é que sentem que, apesar de Portugal ser melhor nesse aspeto, já não é um país assim tão seguro.”
E sim, a ansiedade escala, de forma mais vincada nos grupos mais vulneráveis, mas, de alguma forma, na sociedade no seu todo. “A vivência deste contexto macropolítico mundial pode gerar ansiedade coletiva”, constata Sofia Ramalho, bastonária da Ordem dos Psicólogos, reconhecendo que “as pessoas andam mais ansiosas no geral” e que isso se sente “na procura de apoio psicológico”. Filipa Pimenta, psicoterapeuta e investigadora do ISPA – Instituto Universitário, acrescenta que, face à atual conjuntura, termos como stresse de eleições ou ansiedade política têm vindo a ganhar espaço.
A investigadora dá como exemplo um artigo da American Psychological Association (APA), de 2024, intitulado “The impact of election stress: is political anxiety harming your health?” (traduzindo: “O impacto do stresse das eleições: está a ansiedade política a prejudicar a nossa saúde?”), uma espécie de resumo de vários estudos feitos sobre o tema, com constatações particularmente relevantes. Desde logo, o facto de 77% dos americanos apontarem o futuro da nação como uma “fonte significativa de stresse” nas suas vidas (segundo o inquérito “Stress in America 2024”, também conduzido pela APA). “Há argumentos fortes para defender que, para muitas pessoas, a política é uma forma de stresse crónico”, defende Brett Ford, professor de Psicologia da Universidade de Toronto, citado no referido artigo.
Discussões e ruturas
Na prática clínica, Filipa Pimenta também se vai deparando com as consequências do atual quadro político e social. “Há pessoas que mencionam o impacto que estas questões têm, um aumento da irritabilidade em discussões laborais e familiares, nalguns casos com perda relacional. Sendo que a perda desta rede acaba por deteriorar um recurso que é um dos mais protetores para a saúde física e mental: o suporte social.” De resto, está descrito, esta ansiedade política pode traduzir-se em perturbações de sono, maior irritabilidade, pensamentos de orientação obsessiva para as notícias. O artigo da APA refere até que uma em cada 20 pessoas estava tão angustiada com a política que tinha pensamentos suicidas. Além do impacto na saúde física. Desde logo porque o stresse é imunodepressor.
A questão é que, como vinca Sofia Ramalho, os partidos populistas alimentam-se em grande medida da ansiedade. “A procura de segurança é uma premissa do ser humano que, quando se sente ameaçado na sua estabilidade, fica naturalmente desorientado e vulnerável a soluções mágicas e discursos populistas. Ora, hoje vivemos uma fase de grande incerteza económica, um período de grandes transformações em que as desigualdades aumentam. E portanto há um espaço que fica livre para estes discursos. Estes movimentos crescem não só com base numa dada ideologia, mas no que já se sabe sobre as emoções das pessoas. Tentam capitalizar sentimentos como o medo, a frustração, a raiva e a insegurança com discursos aparentemente sedutores, mas muito perigosos, porque incentivam comportamentos de exclusão e de desumanização. Que por sua vez vão aumentar ainda mais o isolamento e a ansiedade.”
Isabel Rocha Pinto, professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação (FPCEUP) e diretora do Laboratório de Psicologia Social da Universidade do Porto, também foca estes mecanismos. “As pessoas têm uma perspetiva evolucionista das sociedades, que é a ideia de que elas caminham sempre para melhor. Perante a instabilidade, gera-se uma perceção de ameaça. Acresce que há uma falta de literacia política vincada, que deixa os cidadãos muito vulneráveis à propaganda e à incerteza. As pessoas não sabem para onde ir, mas querem respostas. A isso junta-se uma falta de confiança nas instituições, propositadamente alimentada por estas correntes populistas. Tudo isto vai contribuir para que grupos alternativos, teorias da conspiração e discursos securitários pareçam mais apetecíveis.” É uma bola de neve: as dificuldades abrem espaço aos discursos populistas e extremistas que, por sua vez, procuram fomentar uma ansiedade coletiva crescente, na ânsia de ganhar cada vez mais espaço.
E há forma de mitigar a ansiedade política? Há. Filipa Pimenta explica. “Por um lado, limitar a exposição a conteúdo político e escolher fontes fidedignas. Por outro, reforçar as redes de apoio.” Já Sofia Ramalho, bastonária da Ordem dos Psicólogos, recomenda a procura do apoio especializado, sempre que haja sintomas do foro clínico. “Quando estes quadros de ansiedade permanecem muito no tempo, quando alteram as nossas rotinas, quando ficamos com medo de sair de casa, quando começarmos a evitar pessoas ou a não fazer coisas que habitualmente fazíamos, quando nos sentimos vítimas.” Nestes casos, é imperativo procurar ajuda.