"A vida como ela é" é um espaço de opinião quinzenal assinado pela escritora Margarida Rebelo Pinto.
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Ando há meses a tentar perceber o que aconteceu à esquerda em Portugal, e se nem eu nem muitas pessoas percebem, provavelmente é porque a esquerda também não se entende. O alinhamento fanático à causa palestiniana está entre vários mistérios por desvendar. Porque é que um Estado de direito como Israel que foi alvo de um massacre filmado e festejado, com bebés queimados em fornos, corpos decapitados com as cabeças levadas como troféus e mulheres violadas e depois despedaçadas é o grande vilão em favor de uma região dominada por um grupo terrorista que usa hospitais e crianças como escudos perante ataques do inimigo? É evidente que a resposta de Israel foi brutal e sanguinária, a ponto de ser condenada pelos seus mais fiéis apoiantes ocidentais. Nesta guerra não há bons nem maus, ambas as partes são condenáveis. Contudo, ninguém no seu perfeito juízo pode equiparar prisioneiros de guerra com direito a visitas e tratamento médico em solo israelita a reféns levados à força das suas casas, metidos em túneis, sujeitos a torturas e tratados como animais em cativeiro no corredor para o matadouro.
O problema da esquerda é profundo e complexo, porque temo que seja uma questão de confusão mental. Onde está a esquerda progressista que foi baluarte do feminismo, que lutou pelo direito das mulheres ao seu corpo, queimando soutiens, e que agora defende o uso da burca? Onde param os ideais do socialismo moderado de Mário Soares, que sentiu na pele o perigo de uma ditadura comunista e que, por isso mesmo, desde cedo se demarcou de Álvaro Cunhal? Com a invenção da chamada geringonça, o PS alinhou-se com uma esquerda extremista e radical e perdeu o seu rumo. Afastou moderados e enalteceu os enfants terribles da sua pandilha conjunta. Onde estão eles agora? Pedro Nuno Santos cristalizou definitivamente na bancada dos irrelevantes e a menina Mortágua, eleita por um triz, abandonou o seu posto de trabalho para embarcar numa travessia trágico-marítima sob o pífio pretexto de levar ajuda humanitária, com direito a um mediatismo digno de uma heroína romântica, qual Joana d"Arc da Mouraria.
Ainda sobre a polémica das burcas, é no mínimo estranho que numa cultura ocidental e laica se levantem vozes a defender tal prática. O que se passa na cabeça desta esquerda radicalizada para defender fações extremistas de uma religião, nomeadamente aquelas em que as mulheres são maltratadas, humilhadas e segregadas, a quem são negados direitos universalmente consagrados? Vestindo a pele do justiceiro que luta sempre em nome dos mais fracos, apoia-se nesta narrativa para combater contra todo e qualquer sistema do qual não faz parte, assumindo uma superioridade moral autoproclamada da qual se acha única e legítima detentora. E o que têm a dizer sobre os massacres sucessivos na Nigéria contra a população cristã, ou acerca das leis em países islâmicos que permitem o casamento de meninas a partir dos nove anos? A esquerda não tem respostas sérias nem coerentes, porque a sua narrativa não é mais do que uma falácia construída sobre os cacos de ideais há muito perdidos. Pensa que anda à bolina, mas está à deriva, quem sabe para sempre.
Somos um país de brandos costumes, espero que o bom senso luso se sobreponha a tanto disparate.

