Na quarta-feira, o Gauguin e a Colette fugiram. Não fugiram: partiram à aventura e já não conseguiram voltar. Arranjaram maneira de se evadir do pomar - sabe-se lá como -, atravessaram o enorme silvado em que eu deixei que se transformasse a mata e ficaram retidos lá em cima, nos pastos que agora são do Galão, entre arames farpados e muros de pedra esborralhada. Problema: quando chegámos a casa, já era de noite. Se fosse noite de mau tempo, teria sido ainda pior, mas mesmo assim eu chamava-os cá de baixo, assobiando até se me acabar o fôlego, e eles devolviam lá de cima ganidos desesperados - sobretudo a Colette.
Convenci-me de que estavam feridos e alarmei-me. Os cães do Artur. Os cães que serão da Salomé. De maneira que me atirei à anarquia em que os jardineiros vão deixando a garagem - que saudades do Chico -, à procura da lanterna para me orientar na noite e da foice para perfurar o silvado. Não encontrei nenhuma. Voltei para cima, a ver se ao menos a lanterna dava sinal de vida, mas virei a casa do avesso, e nada. De vez em quando vinha à rua, assobiava e lá me ganiam eles, numa agonia. A Marta chorava. O Artur chorava. Liguei ao Chico: já não tem lanterna. Liguei ao gerente do Guarita, mas as caixas já estavam fechadas. Fui à mercearia, perguntei ao Fábio e aos próprios clientes. "Um fox!", facilitei, "ninguém tem um fox?!" Nada. Até os bombeiros me mandaram pastar.
Salvaram-me os novos rapazes da Junta, presidente e ajudantes, que foram pedir uma lanterna a um amigo, e que chegaram quando eu próprio já tinha arranjado outras duas, porque o gerente do Guarita se condoeu. Afinal não conseguimos atravessar o silvado, mas subimos à Canada da Quinta, descemos aos pastos e acabámos por resgatar os bichos (ilesos). Entretanto, fiquei a pensar neste tempo em que já nem o Chico - o Chico, imagine-se - tem uma lanterna. Usa o telemóvel para as pequenas coisas e já não está preparado para as maiores. Nem o Chico, nem ninguém. Nem eu. E, aliás, das lanternas que arranjámos, nenhuma era (digamos) de socorro: uma era de um caçador, outra de um guia turístico e as minhas eram para vender à malta das corridas. Parece que estamos a esquecer-nos de que podemos ter de sobreviver, nesta terra de sismos, tempestades e maremotos. Por outro lado, estamos cada vez mais preparados para o ócio.
No dia seguinte fui pagar as lanternas, já penduradas atrás da porta, e daí dei um salto à Unicol, a comprar uma nova foice também. Aproveitei e trouxe uma machadinha para a lenha. Cheguei a casa e mostrei tudo ao Artur. Disse-lhe como se chamava cada coisa e expliquei para que serviam. Há-de aprender a usá-las, ele e a Salomé, e isso vai distingui-los dos miúdos da idade deles.

