"A vida como ela é" é um espaço de opinião quinzenal assinado pela escritora Margarida Rebelo Pinto
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A minha vida de escritora leva-me a viajar por Portugal onde conheço gentes e terras que me aquecem o coração. De norte a sul, visito bibliotecas, participo em painéis de conversas com outros escritores, descubro igrejas e miradouros, delicio-me com a gastronomia local e sou sempre mimada com presentes singelos. Portugal é talvez o país mais querido do Mundo, portanto é apenas normal que encante qualquer estrangeiro que o visite. Contudo, acredito que encanta ainda mais quem nasceu português e vai descobrindo o território de lés a lés. E nestes encontros com leitores, recebo com carinho as histórias que me contam, enquanto pousam no chão um saco carregado de livros, alguns com mais de 25 anos, que me demoro a autografar.
Uma das perguntas que mais me fazem é o que é isto de ser escritor. Como se escolhe uma profissão tão solitária, como nasce um livro, onde se vão buscar forças para o terminar. Entendo a curiosidade perante um trabalho singular, que muitos imaginam mais fruto de inspiração do que de horas, dias, semanas, meses de trabalho árduo, tentando desmistificar tal mito com uma frase de Picasso: "Que a inspiração te apanhe a trabalhar". Quando me perguntam se é difícil, dou sempre a mesma resposta: difícil é passar um dia sem escrever, porque a vida não deixa. Difícil é querermos muito fazer algo que não conseguimos. Difícil é sentir a falta da escrita enquanto não encontramos uma história que nos agarre a ponto de não nos querermos levantar da secretária durante vários meses. Difícil é viver sem escrever e não sentir culpa, porque um escritor só se sente preenchido quando mergulha no trabalho a ponto de esquecer o tempo. Cada romance escrito cruza-se com um romance vivido, seja no presente mais quente, ou no passado, sempre morno e quase nunca frio, mesmo que tudo tenha sucedido lá muito atrás. O simples ato de reavivar uma memória torna-a real e presente, imune ao gelo erosivo da distância. A construção das personagens e o seu papel na trama é semelhante à de pessoas que conhecemos e por quem nos apaixonamos. Escrevemos sobre heróis belos porque é assim que vemos aqueles que amamos. E já agora valentes, porque é isso que esperamos deles na vida real. E quando a desilusão inevitavelmente bate à porta, zangamo-nos com eles, dentro e fora dos livros. Se a ficção imita a realidade, não raro a realidade também imita a ficção.
Os livros dão-nos quase tudo: sonhos, mundos, pensamentos e sensações, e ensinam-nos a ouvir a voz humana. A nossa e a dos outros. Ainda assim, a vida é muito mais rica do que qualquer livro. Uma coisa é certa: todos os escritores deixam a sua pele nos livros. E também um pouco de sangue, até que a escrita feche a ferida.