Cidadania Impura
Corpo do artigo
O Agostinho é da família dos tornados, daquelas chuvas de Inverno que agora têm nomes e mudam tudo, não deixam nada quieto. Eu nunca vi tanta força hercúlea nem tantas ganas de se ser como se é. O Agostinho é elevado à quarta potência de si mesmo, como se tivesse mais do que um espírito, talvez dois ou dois mil, a levantar um só corpo como um exército de artistas em direcção à arte.
Entre a fúria e a folia, o Agostinho faz o que mais de cem homens não fariam. Não entendo como tem tempo, como se lembra, como acorda solar a cada dia, sem lunaridades nem demoras. Não conheço ninguém com tanta imediatez na decisão e no gesto. O que tem para fazer, já fez. Eu, que espero pelo alinhamento dos astros, pondero as dores de cabeça, nas costas, o pudor, a preguiça, os livros que quero ler sem ansiedade, a gula de comer mais pão com manteiga, dizia, eu sou como a semana passada do Agostinho. Quando estamos juntos, ele já vai no calendário da página seguinte e eu até sinto que recuei ao início do ano, estou para fazer as promessas de motivação, jurando a mim mesmo que, agora, vou de verdade escrever o que adiei a vida toda.
Nunca lhe dói nada. Mas que raio é um homem a quem nunca lhe dói nada? A mim, santa desgraça, com facilidade me dói tudo. Quanto mais teria feito da vida sem um corpo às dores? E ele sequer entende por completo o que é doer, o que exausta, o que parece ser a morte à espreita no limite do corpo, no limite do pensamento em angústia, à espera, na dúvida, no medo. O Agostinho tem a saúde das pedras. O tempo erode mas quase não se nota. É outro tempo contando.
Ultimamente, não nos temos visto. Eu vou à minha pressa para um lado e ele para outro. Pensei que talvez eu virasse também da família dos tornados, a fazer uma tempestade em volta sem poder deter-me. Deve ser isso que me acontece agora. Sou também uma daquelas chuvas fortes de Inverno a que me falta dar o nome, porque não me identifico por completo. Mas tudo é urgente neste caminho. Falta-me tanta coisa que, se não acalmo, tenho a impressão de ter feito nada. Porque me apetece fazer tanto mais que nem se compara com o que já há. Sou dos tornados, afinal. Mas talvez caminhe para resistir ao que se adianta no calendário, como quem precisa de ir atrás criar renda. E não só como quem se prepara para o futuro. Está tudo tão precipitado que me convenço de que a única lucidez é a de preparar o passado. O passado é aquilo que já deixamos depositado nas mãos do futuro.