Cidadania Impura
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Sonhei que me chamaram para falar à alma do meu sobrinho. Pensei ser a minha morte também. Que bonito seria morrer assim a recado de alguém que amamos e partiu primeiro. Sonhei que fui falar-lhe, e o meu sobrinho estava doutor e eu pequeno e perdido sem palavras inteiras nem corpo. O Eduardo perguntou se eu alguma vez pedira à Agustina Bessa-Luís que me dedicasse um livro. Respondi que não. Pedi para assinar a um amigo, mas não pedi para mim.
Havia música a tocar, parecia um disco estranho que eu nunca ouvira e que nem soava bonito, deixava-me incomodado, desperto ao que circundava e não se via. Então, a própria Agustina veio de má vontade ver-me e riscar umas palavras na página que subitamente eu abria perplexo. Era como se lhe estivesse a atrasar a morte, a dar-lhe trabalho quando, por definição, todo o trabalho teria terminado. Eu desculpava-me por ter sido tão jovem e presumir que ainda nos encontraríamos mais mil vezes para mais mil conversas. O Eduardo, a alma do meu sobrinho, sem muito tempo para os vivos, explicava-me que era feio um escritor guardar os livros sem uma palavra dos pares. A biblioteca de um escritor tem de ser um encontro pessoal, uma prova de companhia. Os livros são correspondência.
Há uns tempos, surpreso, encontrei um livro que Agustina Bessa-Luís me dedicou. Fiquei comovido. Escrevi sobre isso na altura. Por mais de vinte anos julguei nunca ter pedido tal coisa à tão grande escritora. Afinal, em algum momento dos nossos encontros, terei recebido aquela oferta com um abraço que agora me constrói uma saudade tão grata.
Sonhar com o meu sobrinho tornou-se uma prática constante. Será certamente a minha forma de não aceitar que morra. De lhe dar mais dias, mais histórias e muito mais razões para ser uma maravilha. Claro que não sei inventar-lhe uma vida por inteiro, algo lógico e coerente, algo que imite razoavelmente o que seria estar ainda aqui. Mas, é-me inevitável tê-lo para imaginar qualquer futuro. Até mais do que nunca. É matéria-prima. Não se faz mais nada sem ele.
Tenho pedido a tanta gente para me dedicar livros que a minha biblioteca é toda companhia. Já o seria, mas virou um jogo. Como caçar conchas na praia pela generosidade da maré. Suponho que a alma do Eduardo se ri, mais doutora ainda, claro. Suponho que daqui a vinte anos vou encontrar esses abraços escritos com a mesma surpreendente alegria com que encontrei o de Agustina. E vou agradecer o sonho, a imitação da vida.