A vida como ela é
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Quando o feriado nacional que celebra a Portugalidade é o mesmo dia da morte do seu maior poeta, isso diz muito sobre a alma de um país. A 10 de junho de 1580 morria Luís Vaz de Camões, poeta épico e lírico, que os séculos acabaram por consagrar também como historiador, graças ao seu poema épico, “Os Lusíadas”, publicado em 1572. Curiosamente foi republicada sob a ordem dos invasores, quando reinava Dom Filipe II, primeiro de Portugal, responsável pela tradução da obra em castelhano, talvez com a intenção de agradar à elite invadida.
Existe um fosso gigantesco entre aquilo que foi dado como provado sobre o poeta e o que foi posteriormente narrado, especulado e atribuído à sua pessoa e à sua obra. Não se sabe ao certo a data de nascimento, mas existem registos do dia em que embarcou para a Índia, corria o ano de 1553, a bordo da nau São Bento, capitaneada por Fernão Alvares Cabral, uma das quatro que compunham a Armada Portuguesa. Se não restam dúvidas quanto à autoria da magnífica obra épica, o mesmo não se pode dizer da lírica que todos apaixona, ou no mínimo, encanta. Alma minha gentil que te partiste, ou amor é fogo que arde sem se ver, são excertos de versos tão presentes na cultura lusa quanto a sardinha assada, o fado, o pastel de nata ou os pauliteiros de Miranda.
Contemporâneos a Camões, existiram inúmeros poetas imbuídos da arte da imitação, munidos da sua pena, do seu tinteiro e do seu cancioneiro de mão, onde escreviam os poemas da sua autoria, bem como outros, que copiavam dos seus pares, assinando com o seu nome por baixo. A história consolidou a imagem de um poeta brigão (terá perdido o olho direito num combate em Ceuta) e aventureiro, que cruzou os mares e sobreviveu a um ou a vários naufrágios, guiado pelo mito da pátria, apaixonado, ardente e possante, para quem as mulheres ascendiam facilmente à categoria de musas e a luxúria seria tão nobre quanto a pena ou a espada. O fascínio que tinha por Dom Sebastião é ensombrado quando o rei escolhe um poeta que ele considerava menor, Diogo Bernardes, para o acompanhar a Alcácer Quibir. Chamavam-lhe “Barbirruivo”, por ser loiro (ruivo ou ruço eram à época sinónimos de loiro), e algumas damas, para o desdenharem, a ele se dirigiam como o “Cara sem olhos”.
O historiador Rui Ramos defende a tese que Camões foi não apenas um dos grandes historiadores nacionais, graças aos cantos III e IV de “Os Lusíadas”, que relatam em verso os mais importantes episódios da História de Portugal, mas também o principal responsável pela criação de uma identidade de Portugal. Não será por acaso que termina o grande poema desejando a Dom Sebastião que dele o Mundo no futuro cante “de sorte que Alexandre em vós se veja/sem à dita de Aquiles ter inveja”. Camões é e será sempre o poeta que eternizou a grandeza da ocidental praia lusitana e das suas gentes de alma sonhadora e valente e, ao mesmo tempo, mesquinha e invejosa. Que a sua voz nunca se cale, pois os poetas fazem cada dia mais falta.