Cidadania Impura
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A Alzira foi para freira há já muitos anos, mais de 20. Não a voltamos a ver. As freiras parece que têm de praticar a lonjura e fazer de conta que agora a vida é só nova, sem amarras ao passado, sem saudade. Deve acontecer uma paixão pelo futuro que impede qualquer exercício do passado. Depois de tanto tempo, lembro ainda da Alzira porque gostava muito dela, de lhe reconhecer a bondade, o gesto mais limpo para com os outros. Julgo que toda a vida me aproximei de pessoas assim. Que sinto serem sinceras em seu cuidado com os outros. Fascinam-me. Gostaria de ser-lhes igual.
Imagino as freiras cobertas de panos grandes, como cortinados que as façam esquecer de serem corpos e as ponham da família das paredes. Austeras e sem abraços. Imagino-as sem que se encostem umas às outras a ver um filme, quando algo que nos enternece se passa e a cabeça nos cai para um ombro como se a cabeça inteira fosse um fruto a tentar cair manso da árvore. Para mim, seria importante que as freiras fossem felizes. Que pudessem ter mansidão e esperança numa companhia qualquer.
Conventos e mosteiros e todos os sacerdócios deviam ser lugares de portas abertas por onde fosse caminho de toda a gente. Quem fosse trabalhar ou passear devia seguir pelos corredores dessas casas grandes e fazer conversa com seus habitantes para os obrigar a dizer bom dia e a discutir coisinhas de nada só por alegria comum. Era maneira de ver as freiras e os ermitas todos. Os ermitérios deviam ser proibidos e todas as solidões curadas. Deus devia ser uma companhia múltipla e falar e deitar a cabeça em nossos ombros como um fruto manso.
Sei bem que a Alzira está para Lisboa, para a grande Lisboa, e deve ser chamada de madre, deve ter o mesmo ar de freira que têm as que nunca foram minhas amigas. E sei que ela, que foi sempre mais inteligente do que eu, nunca estaria ali se não fosse fundamental à sua felicidade, mas eu aprendo que a felicidade também é ladra. Rouba-nos pessoas. Muda-lhes a vida tanto que nos comparamos com a mesma naturalidade com que compararíamos um livro ao osso intacto de uma árvore.
Adoraria que houvesse um Vaticano para freiras e que elas tivessem uma papisa e falassem na televisão e publicassem livros para que soubéssemos delas. Para que mostrassem seu poder e seu amor. Para que víssemos a Alzira a cuidar do Mundo.
*O autor escreve de acordo com a anterior ortografia