"Pai aos 50" é um espaço de opinião semanal assinado pelo escritor Joel Neto
O meu era o Manuel Aurora. Andávamos juntos para todo o lado, embora também nos desentendêssemos. Uma vez pegámo-nos de guedelha a propósito de uma tolice qualquer e rebolámos de tal modo engalfinhados sobre a areia do Fernando Valadão, circunscrita por blocos de argamassa na borda da estrada, que tivemos de arrumar aquilo tudo no fim, cheios de medo dele.
Eu era o competitivo, o Manuel Aurora era o descontraído. Jogávamos à bola um contra o outro e eu saía aos gritos: "Ganhámos, ganhámos!", ao que ele vinha atrás, com um humor raro: "Patámos, patámos!". Desenvolveu tarde a linguagem, mas era incrivelmente bonito, mais até do que lhe convinha. Ainda não tinha idade para tirar carta de condução e já as mulheres das redondezas se queriam deitar com ele - inclusive algumas casadas.
Agora vive nos Estados Unidos, depois de uma vida emocionalmente turbulenta (até mais do que a minha). Só nos vemos no Facebook. Mas foi o melhor guarda-redes que esta ilha produziu em 20 anos, e eu continuo a ter muito orgulho nisso.
Já o do Artur, é o Pedro. Escolheram-no as circunstâncias, mas escolheram-se eles também. Desde que a Sónia o trouxe cá a casa pela primeira vez, juntando o baby-sitting do nosso ao cuidado do seu filho, nunca mais se largaram.
Passam ambos a semana a pedir para irem brincar para a casa um do outro, e, quando se encontram, a primeira coisa que fazem é trocar um longo abraço. Ontem, domingo, levámo-los os dois ao teatro. Tiraram fotografias a fazer fixes, um muito encostadinho ao outro, viram o espectáculo trocando olhares e depois o Artur anunciou: "Vamos comer morangos!".
Morangos, para ele - demorámos imenso tempo a perceber, e ainda hoje não sabemos de onde isso vem -, são os nuggets do Burger King. Fazia sentido, portanto levámo-los a comer morangos - e a seguir ainda fomos com eles aos baloiços do Relvão, para uma folia completa.
Quando se separaram, ao fim do dia, o Artur chorou convulsivamente durante imenso tempo. O Pedro fez-se forte, enfiou-se no quarto, mas dali a bocadinho - diz a Sónia - saiu de lá a soluçar, inconsolável.
O melhor amigo é um dos grandes patrimónios da infância, tanto quanto a mais infeliz lacuna - salvo excepções redentoras - da idade adulta. Às vezes demoramos demasiado tempo a percebê-lo, e acho que foi por isso que, quando fizemos os baloiços no jardim, eu e a Marta pusemos um azulejo por cima de cada um: no da direita está escrito "Artur" e no da esquerda está escrito "Pedro".
Desenhou-os o Mário Duarte, com infinito zelo. E agora, ao nascer a Salomé, vai ter de redesenhar um deles: o que diz "Artur" vai passar a dizer "Artur/Salomé" - o outro continuará a dizer "Pedro".

