As rádios universitárias estão crescidas (e já não são só para estudantes)
Há as que nasceram no século passado, ainda piratas, e que fizeram caminho. Umas tornaram-se totalmente profissionais, como a RUM. Outras, como a RUC, seguem vivas à força da vontade de alunos e da comunidade, todos voluntários. E ainda há novos projetos a nascer, acabados de criar, como a Ria, já pensada ao detalhe.
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O GPS indica Praça Conde Agrolongo, bem no coração de Braga, e o edifício do gnration não escapa à vista. Antigo quartel da GNR, agora renovado, é centro cultural na cidade dos arcebispos e, mais do que isso, é casa da Rádio Universitária do Minho desde 2019. Da rádio da música alternativa, da rádio onde se escutam notícias da academia, da região, do país, do Mundo, da rádio onde o sinal horário ainda é assinalado pela voz de António Durães, por frases escritas e ditas pelo ator e antigo diretor. Da RUM, para os que a conhecem bem. Os estúdios modernos no piso zero, num mar de luz que inunda o espaço, não denunciam uma história que já vem do tempo das rádios piratas. E contrastam com a cave escura no bairro de Santa Tecla onde durante anos a RUM funcionara.
Elsa Moura está no piso 1 a tomar café, dois lanços de escadas para lá chegar, é um café concerto, RUM by Mavy, assim se chama. A gestão está concessionada, mas a RUM também tem dedo na programação, nos concertos que lá têm lugar, e usa o espaço para tertúlias. “Ainda há dias, um casal reformado de americanos, que está a viver em Braga, estava aqui a comentar que ouve a RUM. A nível de rádios locais, em Braga, seremos a mais ouvida de certeza”, afiança a diretora de informação, antes de descer num despacho para entrar no estúdio e dar as notícias. Elsa estudou na Universidade do Minho, estagiou na RUM, perdeu-se de amores, foi ficando. Mas recuemos no tempo, ao momento em que tudo começou. Reza a lenda que a rádio surgiu numa época de contestação dos estudantes da academia minhota ao preço das refeições na cantina, queriam amplificar a sua voz, o então presidente da associação académica apadrinhou a ideia, quis desenvolver o projeto, estávamos nos anos 1980. Começava assim a experiência num vão de escada, na Rua do Forno, com emissões em horários muito definidos, interferências no sinal. Muitos nomes do jornalismo ou da rádio de hoje por ali passaram.
No final da década, durante o processo de licenciamento das rádios piratas, a coisa torna-se mais séria. O Governo atribuía um número limitado de frequências por distrito, nada fazia prever que a RUM fosse escolhida, mas foi, contra todas as expectativas. Era Miguel Macedo, falecido em março, um jovem político e sabe-se agora que terá contribuído de alguma maneira. Vasco Leão recorda a história com propriedade, já leva vinte anos como administrador, antes fora presidente da Associação Académica da Universidade do Minho (AAUM), entrou com o objetivo de reestruturar financeiramente o projeto. Não mais saiu, a rádio entranha-se na alma.“Temos três tipos de ouvintes: a comunidade académica, os que ouvem pela cobertura local que fazemos e quem nos segue pela programação. É uma das poucas rádios de música alternativa no país, esse perfil mantém-se desde o início.” Não há muitos anos, recebiam chamadas a perguntar o nome da música que acabara de passar no 97.5 FM, havia até quem pedisse o alinhamento completo.
Quando Vasco entrou, não existia corpo de funcionários nem contratos de trabalho, seguia tudo com carolice. Ainda se lembra do velhinho emissor, “um mono de válvulas, que pesava aí uns 100 quilos”. A RUM profissionalizou-se desde então, são onze pessoas a tempo inteiro. “Com o apoio da associação académica, que percebeu o papel que temos na universidade e na região, em Braga, Guimarães.” Faz parte da AAUM, mas tem autonomia editorial e financeira, não está sujeita a agendas. E é hoje muito mais do que uma rádio universitária. “Investimos nas notícias ligadas ao Ensino Superior, mas vamos muito além disso e conquistámos o respeito das entidades na região, que recorrem muitas vezes a nós até para a transmissão streaming de eventos”, aponta Elsa.
Entretanto, a diretora e jornalista entra em antena, abre o noticiário com Luís Montenegro. Os assuntos nacionais importam. Vai dando indicações à locutora Sara Pereira e as duas aproveitam para lembrar o ataque de riso que, há semanas, tiveram em direto. Sara é do Porto, não estudou no Minho, foi parar à RUM depois de fazer um curso do RUM Lab, uma escola da rádio em que se abrem candidaturas, duas vezes por ano, a quem tiver uma ideia, seja para a informação, para a área da programação ou do audiovisual. Para um podcast, por exemplo (e têm muitos programas de autor). Acabou por ser convidada a ficar depois da experiência. As portas estão abertas a todos, o espírito é jovem, aposta-se em recém-licenciados, do Minho e não só. E o resultado está à vista. A RUM é forte no online, é ouvida pelo Mundo, prepara-se para lançar um novo site e um arquivo digital, talvez se consiga digitalizar uma entrevista de António Durães a José Saramago, e outras a Álvaro Cunhal ou Mário Soares. Ainda terá, no futuro, uma app.
Dos relatos da RUC à novidade em Aveiro
Há uma certeza, as rádios universitárias já não são ouvidas apenas por estudantes, têm um papel na realidade local, mesmo quando continuam a existir só por amor à camisola. Um exemplo emblemático disso é a cobertura exaustiva de todos os jogos da Académica de Coimbra pela RUC, a Rádio Universidade de Coimbra, em relatos nada imparciais, inusitados até, que são marca identitária. Divertem-se com o outfit dos treinadores, com penteados, até com detalhes da vida pessoal dos jogadores. Basta ver que, quando o antigo treinador Artur Jorge morreu – antes de se celebrizar no F. C. Porto, foi um nome grande da Académica –, leram-se poemas eróticos da sua autoria no ar, durante um relato.
Na cidade dos estudantes, a rádio ainda segue tal e qual como começou, todos são voluntários, dizem ser a única rádio-escola no país, feita do compromisso de quem a ela se junta. Gonçalo Pina, antigo presidente da RUC, agora coordenador do departamento de relatos, faz contas de cabeça, serão uns 120 colaboradores, alguns com participações muito pontuais. E afirma, sem rodeios: “Somos uma rádio do concelho, assumimos quase a responsabilidade de ser a rádio de Coimbra. E, pela via digital, somos ouvidos de norte a sul, até no estrangeiro. Sobretudo por adeptos da Académica”.
Como tudo começou não se sabe bem, consta-se que já nos anos 1940, num manifesto da campanha de Salgado Zenha à direção da Associação Académica de Coimbra, se reclamavam melhores condições para o projeto da rádio. Há até um antigo mural de azulejos, de Abel Manta, nos jardins da associação, com imagens de pessoas a fazer rádio. Algumas certezas, porém: principiou como centro experimental, a emitir só para os estudantes, “para as cantinas” da academia. Foi crescendo, testou-se transmitir para a cidade toda, até que, no processo de legalização das rádios, a RUC consegue o alvará para emitir para o concelho, em 107.9 FM. Os estúdios já velhinhos, de equipamento degradado (fez-se, recentemente, um crowdfunding para os renovar, que chegou aos 31 mil euros), mantêm-se no edifício sede da associação académica. “Mas não somos uma rádio só de estudantes, a RUC está aberta à comunidade. Qualquer pessoa pode participar, há um clima intergeracional, embora, claro, muito universitário. O Fausto da Silva, que é uma bandeira da RUC, está cá há mais de 40 anos”, realça.
Há só uma regra, um requisito mínimo, fazer um curso antes de se lançarem aos microfones. Quem já lá está dá formação aos que vêm. E não, os estudantes não chegam só do curso de Jornalismo e Comunicação, vêm de várias áreas, “encontram na RUC um escape ao dia a dia”. “Mas claro que, na área da comunicação, exportamos muitos nomes para rádios nacionais.” As rádios universitárias são rampas de lançamento. Na RUC, a programação é alternativa, às vezes organizam concertos no corredor de bandas emergentes. Os programas ficam disponíveis em formato podcast no site, renovado em 2021, com o apoio da universidade, de olhos postos no futuro. Sendo certo que a rádio é de quem a faz, não tem identidade fixa, é lugar de experimentação, há sempre novas pessoas a aparecer, tanto que Gonçalo, com 22 anos, já é visto “como um velho da rádio”. “Ter sempre gente disponível é uma dificuldade grande, mas temos conseguido, com muita dor de cabeça, muita paixão à rádio e um amor muito grande à Universidade de Coimbra.”
Talvez tenha sido desse amor à academia que nasceu a Rádio Universitária de Aveiro, a Ria, no ano passado. Enquanto umas estão crescidas e se mantêm no ar ao cabo de décadas, outras novas há a surgir. Na verdade, era uma ambição antiga da Associação Académica da Universidade de Aveiro (AAUAv), que nunca tinha visto a luz do dia. Até setembro de 2024, quando o registo na ERC marcou o princípio de tudo. “Faltava um órgão de comunicação independente, com espaço para crítica ao reitor, à associação académica, que envolvesse a comunidade estudantil e, ao mesmo tempo, transportasse a universidade e toda a sua investigação para a cidade.” A explicação é dada por André Reis, antigo presidente da AAUAv, que foi convidado para diretor executivo da Ria, para pôr o projeto a andar. “Quando o telefone da academia toca, nunca se diz que não.”
A rádio ainda não tem transmissão diária, mas já há despacho do Governo para lhe atribuir uma frequência, há de acontecer em breve. No entretanto, funciona online, tudo pensado para o que aí vem, para uma emissão 24 horas por dia, e já há muito trabalho feito. Nomeadamente transmissões streaming de campeonatos universitários ou reportagens que tocam assuntos académicos e locais. Uma das mais procuradas foi sobre as gigantescas filas na cantina da universidade. Outro exemplo é o da investigação que apurou que a deputada do PSD à Assembleia da República, Ângela Almeida, tinha mentido sobre ser licenciada pela Universidade de Aveiro. “O projeto ainda não fez um ano e já escrutina a vida pública local.”
André costuma dizer que a Ria é uma rádio semiprofissional, nem totalmente voluntária como a RUC, nem totalmente profissional como a RUM. Um meio-termo. São quatro pessoas a tempo inteiro e ainda há uma bolsa de estudantes que colaboram diariamente, nas redes sociais, no audiovisual, na fotografia. “Essencialmente nestas áreas, porque em Aveiro não há curso de Jornalismo nem de Ciências da Comunicação.”
O principal sinal de que a Ria já foi criada nesta era é o facto de ter uma app mobile, que envia notificações a cada novidade. Por enquanto, está a funcionar num estúdio que a universidade já tinha, morada improvisada, mas vão ser construídos estúdios modernos, já preparados para “uma visual-rádio”, com vídeo, num investimento da academia, que lhe reconhece a importância. Para melhor entendermos, a AAUAv é quem tutela a Ria, e há um contrato-programa estabelecido com a Universidade de Aveiro. Sempre com a garantia de autonomia. Mas o caminho faz-se caminhando e o mais difícil está a ser afirmar-se. “Apesar de sermos uma rádio universitária, isto não é um projeto de miúdos, amador. Creio que, com o tempo, as pessoas vão perceber que somos credíveis.”