Pai aos 50
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Todos os dias o Artur se põe a cantar. Às vezes ouço-o no quarto dele:
Cinco patinhos
foram passear
Ou algures no corredor:
A porta do autocarro
abre e fecha
Ou no banco de trás do carro, inesperadamente:
Parabéns a você
nesta data querida
Domina os ritmos e as métricas. É afinado. Às vezes a Marta entusiasma-se, e ele:
— Mãe, não grita!
É uma coisa que me traz uma certa alegria (quase escrevi vaidade). Desde o primeiro mês de vida dele que ouvimos imensa música juntos. Acredito na música como uma arte maior, tal qual a considerava Hegel, e as suas relações com a matemática, a montante, como com a literatura, a jusante, continuam a ser duas das preocupações formais por que mais tenho pautado o meu trabalho, quer na regra quer na excepção.
Que o meu filho goste de cantar seria um motivo para acreditar na redenção do mundo mesmo que não fosse a prova de que é feliz. Até que, há dias, ecoou do quarto dele a sua vozinha encantadora:
Avé, avé
Avé Maria
Quase me engasguei. De repente parecia que estávamos na Cova da Iria, as freiras todas em fila, de mãos postas e passos miudinhos, e o grupo de jovens atrás dela, arranhando as violas. Dei por mim a rir a bandeiras despregadas. Assomei à porta do quarto dele, brinquei:
— Canta lá isso outra vez, meu amor.
E ele, sorrindo:
— Avé, avé. Avé Maria.
Afinal, gostei. A verdade é que me agrada a ideia de ele ter uma educação religiosa, malgrado apenas o tenhamos inscrito num colégio católico porque foi o primeiro a oferecer-nos uma vaga. Talvez tenha sido a minha educação religiosa a encaminhar-me para o ateísmo, mais do que qualquer outra coisa. Por outro lado, foi uma formação humana e foi uma formação intelectual. Não conheço um só ex-protestante, e nomeadamente um ex-protestante criado na igreja, que não seja um leitor pelo menos razoável.
Eu próprio devo àqueles anos a manusear as Escrituras, lendo, decorando versículos e tomando consciência de uma hermenêutica oficial – o que pelo menos pressupunha outras hermenêuticas –, a minha relação com a ideia de narrativa. Além do que o catolicismo está agora muito longe de ser uma religião de proibições e anátemas, ao contrário do que eram os baptistas dos anos 1980 (e como têm de continuar a ser hoje, tantos são os fascistas que passaram a albergar).
Uma religião para “todos, todos, todos”, como a exortou o Papa Francisco. Se ele perceber o que a música tem de matemática, o que a literatura tem de música e o que a cultura tem de compaixão, inevitável e inextricavelmente, que mais faltará de evidentemente importante para lhe ensinar?