Começou por ser usada por povos indígenas da Amazónia, mas acabou por rasgar fronteiras. Hoje, o número de retiros segue em crescendo por todo o Mundo, à boleia de um negócio que floresce. Ciência tem provado benefícios ao nível da depressão, ansiedade e dependências químicas, mas há riscos a considerar.
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Sofia Serra perdeu a conta às experiências que teve com ayahuasca. Seguramente, foram dezenas. A dada altura, chegou até a passar meses na Amazónia, em plena selva, com um sem-fim de cerimónias pelo meio, ora profundamente luminosas, ora estranhamente sombrias, invariavelmente poderosas. "É preciso desmistificar. Muita gente romantiza a ayahuasca, vejo muita fantochada", atira, num tom marcadamente crítico. "As pessoas pensam que fazem uma ou duas cerimónias e a vida fica solucionada. Não funciona assim." Ainda na lógica da desmistificação, Sofia acrescenta: "Eu costumo dizer que onde tu estás é para onde tu vais. Se estiveres bem, pode ser uma experiência "uaaau", de pura luz. Se estiveres mal, vais ter uma experiência pesada. Não é para toda a gente." Ela própria está numa espécie de pausa sabática da ayahuasca que dura desde 2019. Porém, não dá a história por concluída: "Sei que um dia ela me vai voltar a chamar." Sofia é toda ela espiritualidade e energias, faz terapias diversas, meditação também. Daí que ayahuasca tenha surgido na sua vida com relativa naturalidade.
Em 2004, numa viagem ao Brasil, passou brevemente pela Amazónia. A estadia foi curta, mas o bichinho ficou. Dez anos depois, decidiu voltar. Começou no "rio da boca do Amazonas" - a foz do rio, localizada no estado do Pará, no Brasil - e foi de barco até Iquitos, cidade peruana no coração da Amazónia, um dos principais destinos mundiais para o turismo de ayahuasca. Sofia já tinha ouvido falar, não tardou a conhecer pessoas que estavam ligadas à organização das cerimónias, resolveu tentar. "Não é uma droga que se toma para ir à festa, é uma experiência profunda e incrível", garante, antes de dar mais detalhes sobre a cerimónia, nome dado ao ritual tradicional e espiritual em que se consome a ayahuasca. "Vamos para uma maloca [espaço sagrado para a realização de cerimónias espirituais, que regra geral é uma casa grande feita de materiais naturais, como madeira e bambu], fica cada um no seu colchão, no escuro, todos temos a nossa toma e depois o xamã [espécie de curandeiro espiritual] vai liderando e dirigindo as energias através de cânticos que são os ícaros." Este é o ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, varia de pessoa para pessoa e de momento para momento.
Para Sofia, a experiência foi de tal forma poderosa que se sentiu tentada a repetir uma e outra vez. "Durante os anos seguintes fui voltando, pelo menos uma vez por ano. Mas em vários momentos fiquei cinco e seis meses na selva, cheguei a fazer parte de uma comunidade ayahusqueira." Explicar o que acontece exatamente após a toma não é fácil. Sofia diz que, primeiro, é como se entrasse num túnel e aparecessem "formas geométricas de muitas cores". "Depois, é como se te visses a ti noutro lugar. Podem ser viagens para o passado ou para outras vidas. É como se estivesses num plano superior e te estivesses a ver, mais abaixo, noutros lugares, quase como no cinema. Nesse processo, vais tendo pequenas luzes e entendimentos da tua vida, que acabas por incorporar. Muitas vezes nem entendes logo. Houve coisas que vi naquelas cerimónias que só há pouco tempo, passado quase dez anos, é que percebi." Ainda assim, sublinha uma e outra vez, cada um tem a sua própria experiência. Vómitos e desarranjos intestinais são frequentes - um processo que quem frequenta as cerimónias chama de "purga". Mas Sofia não tem dúvidas que repetiria tudo outra vez. "Sem dúvida. Foi uma experiência dura, em certos momentos, mas incrível e muito rica. A ayahuasca ajudou-me a alargar horizontes. Não sei se seria a pessoa que sou hoje sem essa experiência."
A ayahuasca começou por ser usada por povos indígenas da Amazónia. Hoje, é tomada em retiros por todo o Mundo
Foto: Getty Images
Tal como Sofia, milhares de pessoas viajam anualmente para a Amazónia para se aventurarem na ayahuasca. Já em 2019 um estudo feito em Iquitos, a tal cidade peruana que é conhecida pela famosa bebida, mostrava que, todos os anos, entre 15 e 20 mil visitantes internacionais participavam em cerimónias de ayahuasca, gerando uma receita aproximada de 15 milhões de euros, só em reservas. Um outro relatório desse ano, no caso elaborado pela organização não-governamental ICEERS (Centro Internacional para a Educação, Pesquisa e Serviço Etnobotânico) apontava para mais de 230 centros especializados a operar na Amazónia e na Costa Rica, que terão assegurado, em conjunto, cerca de 210 mil experiências de consumo. Só em 2019. De lá para cá, a estimativa é de que os números tenham crescido consideravelmente. Segundo uma análise de tendências online da plataforma Glimpse, as pesquisas por "ayahuasca retreat" (retiro de ayahuasca) aumentaram 21% só no ano passado. Acresce que, segundo um outro estudo do ICEERS, ONG sediada em Barcelona, as experiências feitas em contextos indígenas tradicionais representam apenas uma pequena parte - cerca de 10% - do total. Conclusão: ao todo, até 2019, mais de quatro milhões de pessoas em todo o Mundo já teriam experimentado ayahuasca em algum momento da vida. Só nesse ano, cerca de 800 mil pessoas tê-lo-ão feito, pelo menos uma vez.
A ayahuasca, bebida preparada a partir da mistura de duas ervas amazónicas, começou por ser usada por povos indígenas da Amazónia em rituais de cura espiritual, tendo depois sido incorporada em cerimónias de religiões brasileiras, como Santo Daime e União do Vegetal (ambas estão já presentes em Portugal). Depois, algures durante a década de 1980, começou o seu processo de internacionalização, sendo hoje consumida um pouco por todo o Mundo. Portugal, claro, não é exceção. Uma simples pesquisa num motor de busca permite encontrar uma série de retiros de ayahuasca no nosso país, com valores que começam nos 200 euros e nalguns casos, superam os mil. Um deles, cuja realização está prevista para agosto, em Lisboa, custa mais de 1200 euros. Inclui duas cerimónias, várias sessões de ioga e meditação, refeições orgânicas, três noites de estadia. Um facilitador de cerimónias português, que pediu para não ser identificado, dado o estatuto legal dúbio da ayahuasca em Portugal, garante que a casa que orienta, uma das maiores do país, conta já com perto de mil membros.
"Voltei ao útero da minha mãe"
Ana Simões, de 49 anos, residente em Almada, faz parte desse grupo. Algures em 2021, deu por ela num lugar sombrio, com o trauma da morte da mãe ainda por superar, e acabada de sair de um "relacionamento tóxico e narcisista". Como já tinha vivido no Brasil, o conceito das cerimónias de ayahuasca não era propriamente estranho. Mas quando, através de conhecidos, ouviu falar de retiros que se realizavam em Portugal, resolveu experimentar. "Fui com a intenção de perceber o que viria a seguir, porque depois de acabar um relacionamento sentia-me perdida, mas a "medicina" [termo usado por uma parte da comunidade para se referir à ayahuasca] vai buscar outros gatilhos que temos. No meu caso, percebi que tinha um trabalho a fazer com a minha mãe, que me foi abandonando ao longo da vida e que acabou por morrer quando eu tinha 25 anos. Na minha primeira cerimónia, voltei ao útero da minha mãe. Como tinha essa dor camuflada há muito tempo, a "medicina" foi lá buscá-la, para que eu pudesse começar a perdoá-la." Se foi espetacular? Na verdade, não. "Foi uma experiência intensa e dolorosa, em que voltei a sentir a rejeição da minha mãe e revivi os nove meses que passei no útero dela. Foi como se estivesse num filme. Tanto que na altura decidi que não ia fazer mais. Mas ajudou-me a tomar consciência de que, na verdade, a minha mãe não soube fazer melhor."
Dois meses depois, e apesar de no fim da primeira tentativa ter jurado para nunca mais, lá estava ela outra vez. "Muitas vezes sentimos que foi um processo demasiado doloroso e não queremos lá voltar, mas depois a "medicina" acaba por nos chamar. Foi um bocado isso que aconteceu comigo." À segunda experiência, porém, a história foi distinta. "Já foi mais calmo. Em vez de estar a trabalhar processos com outra pessoa, olhei para mim, para o que tinha que trabalhar em mim. Percebi que tinha de largar a dor da rejeição e do abandono e deixar de me autossabotar." Não que as coisas mudem num estalar de dedos, ressalva. "A "medicina" mostra-nos o caminho, no caso foi-me mostrando várias coisas que eu tinha de trabalhar em mim, mas depois nós é que temos de caminhar." Antes disso, Ana já tinha andado numa psicóloga, mas a sensação que tem é que "não adiantou muito". Desde então, terá participado numas dez cerimónias e garante que a experiência tem tido um impacto palpável na sua vida. "Acho que ganhei outra consciência e comecei a olhar a vida com outros olhos, sem tanto peso, com mais leveza, sem estar tão preocupada com o passado ou ansiosa com o futuro. Tu já não és o que eras no teu passado e começas a sentir-te um ser espiritual divino e a aceitar a tua luz e a tua sombra." Também Ana garante que "há muita coisa que só faz sentido meses depois". Quando lhe pedimos que concretize, conta a história de como a ayahuasca, de alguma forma, lhe apontou um novo caminho profissional. "Eu fazia testes covid e andava sempre numa correria, contrariada. A dada altura, no espaço de meses, tive um acidente de carro e parti uma mão. Acabei por tomar consciência que aquilo não era trabalho para mim, que vim ao mundo com uma missão e a andava a adiar." Hoje, é terapeuta de reiki e dá aulas de ioga e meditação a crianças. "Uma das visões que tive nas cerimónias foi que ia trabalhar com crianças." Quanto a eventuais riscos, não se apoquenta. "Não me assusta, porque confio nas pessoas que nos estão a orientar. Se não confiasse, não o faria. E a ayahuasca tem raízes na Amazónia, é um psicadélico natural", defende, antes de atirar: "Tanta coisa que há por aqui que é bem pior do que isso...".
Celso, chamemos-lhe assim, o tal facilitador - a definição é do próprio - que não quer ser identificado para evitar problemas, explica o que faz durante as cerimónias. "O nosso [nosso, porque também a esposa é facilitadora] papel é cuidar das pessoas e ajudar quem estiver a precisar. Há muitos casos em que após a toma se entra num loop de sentimentos e a nossa presença dá segurança." Depois, há os tais ícaros, as músicas que vão guiando quem participa. "A ideia é tirar as pessoas de uma situação de conforto emocional e levá-las, através da envolvência, a um lugar onde existe o trauma que têm de tratar. Mas dando sempre segurança. O processo interno é individual. As músicas apenas o guiam." A esposa de Celso é brasileira, há muito têm casa no país irmão, foi lá que conheceram a ayahuasca e começaram a trilhar este caminho. A primeira experiência foi há quase dez anos, em pleno Rio Grande do Sul, numa "casa xamânica" (espaço sagrado utilizado para rituais e cerimónias ancestrais). Desde então, muitas outras se seguiram, Celso estima que só como participante terá feito umas 300 cerimónias.
Bebida também pode ser tomada em certos festivais. No caso, a foto é do "Pachamama festival", que decorreu na Ucrãnia, no verão passado
Foto: Getty Images
E nenhuma delas foi particularmente violenta, afirma. "Não tenho nenhum trauma, sempre fui saudável, tanto física como mentalmente, sou uma pessoa superfeliz, isso também ajuda. O que senti foi uma mudança de vida muito grande, nos valores, nas coisas que eu achava que eram corretas e foram desmistificadas, na forma de estar. Se durante muito tempo me preocupava com as casas e os carros, fui aprendendo a não dar tanto valor às coisas materiais e a dar mais valor à família, por exemplo. Outra coisa que a "medicina" faz é matar-nos o ego, ajuda-nos a não guardar rancor de ninguém." A mudança chegou também a nível profissional, ao trocar o trabalho de guarda prisional pelo de facilitador. "Vi que não era o meu propósito de vida fazer aquilo", assegura. Sobre as cerimónias, diz ainda que elas ajudam "a recordar coisas antigas e a olhar para a vida de forma mais clarividente".
A dada altura, depois de tanto participar, Celso e a esposa decidiram dar o passo seguinte. "Começámos a ficar lá mais tempo, a aprender como o cérebro funciona e como é que poderíamos ajudar outros." Daí até serem procurados por centenas de pessoas foi um pequeno passo, garante. "As pessoas viam a nossa mudança, na calma, na forma de agir, na forma de responder, na forma como começámos a ver a vida, perguntavam o que tinha acontecido e começaram a querer fazer também." Com o tempo, acabaram por se tornar "uma das maiores casas de Portugal a fazer ayahuasca". E sim, têm página nas redes sociais, mas, por causa dos melindres legais, não anunciam nela abertamente os retiros de ayahuasca. "Simplesmente, quem nos procura, já sabe que fazemos isto e já sabe que através da nossa página consegue lá chegar. São sempre conhecidos de conhecidos." Na prática, quem chega à página e mostra interesse nas cerimónias é adicionado a um grupo fechado, onde se partilham as datas e se dão todas as indicações.
Ao todo, Celso calcula que já tenha guiado mais de mil cerimónias. Grande parte dos participantes, realça, são pessoas que têm depressões, que sofrem de ansiedade, que vivem com traumas grandes e "se querem curar". Em relação ao preço que cada uma destas pessoas paga para integrar estas cerimónias, Celso não o revela. Diz apenas que pode variar muito de casa para casa. E como obtém a ayahuasca? Essa é outra questão que fica por responder. Quanto a eventuais riscos (que abordaremos em detalhe mais adiante), desde logo por não haver supervisão médica, Celso defende-se dizendo que o chefe do grupo a que pertence, no Brasil, é psiquiatra. Argumenta ainda que "tudo o que é feito dentro de gabinete tira a essência do que se faz na cerimónia" e que, antes de qualquer retiro, há sempre uma conversa prévia com todos os novos participantes, uma espécie de anamnese, em que se procura perceber se os "candidatos" têm certas doenças ou tomam determinado tipo de medicação. "Avisamos logo que quem tem esquizofrenia, por exemplo, não pode participar. E pedimos às pessoas que assinem um termo de responsabilidade." Validada a participação, são então partilhadas informações relativas à preparação que deve ser feita. Desde logo, uma dieta, em que se devem evitar alimentos processados, gordurosos ou açucarados, carne vermelha, cafeína, álcool, entre outras coisas. A ideia é purificar o corpo e facilitar a assimilação da ayahuasca, reduzindo o risco de efeitos físicos desagradáveis. O mesmo se aplica a certos medicamentos.
Potencial, perigos, enquadramento legal
E, afinal, a ayahuasca pode mesmo curar a depressão e a ansiedade? Vamos por partes. Albino Oliveira Maia, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, diretor do serviço de neuropsiquiatria da Fundação Champalimaud e professor na Nova Medical School (Lisboa), começa por explicar o que é exatamente a ayahuasca. "É o nome dado a uma bebida preparada por dadas culturas sul-americanas, que consiste numa mistura de plantas. Essa bebida inclui DMT (ou N-Dimetiltriptamina), que é um psicadélico e portanto, tal como todos os psicadélicos, vai atuar sobre recetores da serotonina, provocando uma alteração do estado da consciência. A ayahuasca contém ainda outras substâncias que são relevantes, porque vão alterar o metabolismo, permitindo que o DMT chegue ao sistema nervoso central." O que também explica que a ação psicoativa da ayahuasca possa durar até oito horas. Em relação a psicadélicos como o LSD e a psilocibina, o DMT tem duas características importantes, aponta o especialista: "Tem um efeito intenso e mais rápido". Há ainda a questão da variabilidade, dado que se trata de uma mistura feita de forma artesanal, pelo que se torna difícil saber as quantidades exatas de cada uma das substâncias e de prever a intensidade dos seus efeitos.
Variabilidade essa que se estende à própria experiência, podendo oscilar muito de pessoa para pessoa e até de contexto para contexto, conforme relatado nas experiências que aqui partilhámos. "Pode passar por ver coisas que realmente existem a assumirem características diferentes, com cores muito intensas, por exemplo, ou podem mesmo parecer elementos completamente diferentes. Uma árvore pode parecer um pássaro, um edifício pode parecer uma pessoa. Ou podem ver-se coisas que não existem de todo. Frequentemente, é também relatada uma perda da divisão entre o que eu sou e o Mundo, uma continuidade com tudo o que está à volta. Além de haver uma alteração da experiência do eu, uma experiência mística, uma espécie de divino cuja presença é possível sentir. Depois, claro, também há inúmeros relatos de experiências menos positivas, como pessoas que se sentem perseguidas ou em perigo."
Quanto aos potenciais benefícios, reconhece que há investigação que tem vindo a ser feita em torno de várias substâncias psicadélicas, todas elas com ação nos recetores da serotonina, que demonstram que "há um conjunto de doentes [neste caso, pessoas com doenças do foro mental] para quem a sua utilização traz vantagens". A ayahuasca não é exceção.
"Se esta vantagem é absoluta? Não."
Ora, apesar de uma parte dos especialistas considerar que são ainda necessários mais estudos clínicos de larga escala, há já diversas investigações que demonstram os seus benefícios em condições como a depressão, a ansiedade e a dependência química de outras substâncias. Vários estudos mostraram, por exemplo, que uma única dose de ayahuasca reduziu significativamente os sintomas depressivos em pacientes com depressão resistente, em comparação com o placebo. Quanto à ansiedade, a Space, associação portuguesa de psiquiatras que estuda a utilização terapêutica de substâncias psicadélicas, refere, na sua página, que um estudo duplo-cego [em que nem o doente nem o médico responsável sabem, a priori, se o tratamento administrado é o que está a ser avaliado ou o placebo] mostrou "uma redução estatisticamente significativa dos parâmetros de desesperança, desespero e pânico após ingestão aguda de ayahuasca". Contudo, ressalva-se, "a ingestão parece não ter afetado os traços de ansiedade determinados pela escala STAI [ferramenta de avaliação psicológica utilizada para medir o nível de ansiedade]". Refere-se ainda que a ayahuasca "parece apresentar potencial terapêutico no tratamento de perturbações do uso de substâncias, e quando usada em contextos controlados, não parece acarretar riscos de abuso ou dependência".
Já no que toca à segurança desta bebida e eventuais riscos, a associação lembra que "existe evidência e consenso de que a ayahuasca, em contexto clínico, é segura" e reconhece que os diferentes tipos de ambientes ou contextos em que a ayahuasca é administrada ou ingerida "constituem uma variável importante na avaliação da ocorrência de experiências adversas ou desenvolvimento de sintomatologia psiquiátrica significativa". "O uso da substância em contextos controlados, como em rituais religiosos estruturados, assim como em ensaios clínicos, apontam para uma maior segurança, já que existe de alguma forma uma triagem, preparação, orientação e integração dos indivíduos e respetivas experiências", acrescenta-se. Albino Oliveira Maia é cauteloso. "A experiência tem alguns riscos, desde logo por haver uma alteração significativa do estado de consciência e da capacidade decisória, que deixa quem participa mais exposto à boa ou má vontade das pessoas que estão à sua volta. Os riscos associados aumentam em caso de uso da substância por pessoas que já estão doentes. Devemos ter em conta que são pessoas que estão fragilizadas e que, perante a alteração do estado da consciência, e em dados contextos que não sejam seguros, ficam ainda mais suscetíveis a poderem ser abusadas por quem está à volta." O especialista alerta ainda para um possível aumento da tensão arterial e uma certa toxicidade gastrointestinal, que se traduz nos tais vómitos e desarranjos intestinais, entendidos pelos participantes como um momento de "purga". O psiquiatra e professor universitário deixa ainda outro aviso.
"São tratamentos em relação aos quais sabemos relativamente pouco e não faz sentido estarmos a disponibilizá-los apenas a pessoas com maior capacidade financeira, que os possam pagar."
Há ainda uma outra ponta solta: a questão legal. Questionada pela "Notícias Magazine" sobre o número de apreensões e detenções envolvendo esta substância, a Polícia Judiciária (PJ) ressalvou que não há dados específicos sobre a ayahuasca, mas sim em relação ao DMT, sendo este o estupefaciente que consta da lista de substâncias proibidas em Portugal. A PJ informou ainda que, no espaço de cinco anos, entre 2000 e 2024, houve 37 apreensões (16 delas em aeroporto civil), num total de 73 quilogramas, um valor residual quando comparado com as apreensões registadas de outras drogas. Acresce que o DMT aparece não só na ayahuasca, mas também na changa, "que apesar de ter o mesmo princípio ativo, tem modos de preparação e consumo diferentes", sublinhou a PJ.
João Taborda da Gama, docente da Faculdade de Direito da Universidade Católica e autor de "Regular e proteger: por uma nova política de drogas em Portugal", admite que o enquadramento legal da ayahuasca é complexo. "Como bebida que junta duas ou mais plantas, não é proibida na lei portuguesa nem nos tratados internacionais. Tanto que as Nações Unidas já declararam várias vezes que não se trata de uma substância controlada. A questão é que a ayahuasca contém um composto que é o DMT e, este sim, está referido nas leis como sendo proibido. Portanto, a dúvida legal é: ou as pessoas consideram que por ter DMT a ayahuasca é proibida, ou consideram que por se tratar de uma cocção [espécie de cozedura] de várias plantas não pode ser considerado DMT, e que este só deve ser proibido se for vendido em pó." Depois, há ainda uma segunda questão. "Em alguns países, considera-se que pode usada ao abrigo da liberdade religiosa, dado que é parte integrante de várias cerimónias religiosas." O advogado recorda até uma importante decisão do Supremo Tribunal dos EUA, de 2006, que considerou que a União do Vegetal, a tal religião brasileira que entretanto se expandiu pelo Mundo, tinha direito a importar a substância para as suas práticas religiosas. Posto isto, qual seria, no seu entender a melhor solução legal? João Taborda da Gama não tem dúvidas. "Seria não ser proibida e haver regras sobre a sua utilização, para minimizar os riscos."