"A vida como ela é" é um espaço de opinião quinzenal assinado pela escritora Margarida Rebelo Pinto.
Durante a minha infância e adolescência no bairro de Benfica, assistia da varanda à chegada anual de um pequeno circo que se instalava num terreno baldio que existia no final da rua. Na década de 1980, Lisboa era uma cidade desarrumada e triste, em grande parte devido à ausência de planos urbanísticos integrados. Barracas construídas junto às traseiras de prédios faziam parte do cenário. Aqui e ali bancos de jardim e canteiros em praças rodeadas de prédios eram o suficiente para que a população sentisse algum conforto. Os bancos eram muito utilizados porque fomos a última geração a brincar na rua, os canteiros eram deixados ao abandono e rapidamente se transformavam em depósitos de lixo. Na já citada clareira, instalava-se o circo no início no mês de dezembro, uma tenda pífia de um amarelo ocre comido pelo tempo, que me parecia grande quando era ainda pequena, com uma esfarrapada bandeirola em cima e megafones que passavam música pimba o dia todo e anunciavam as atrações circenses. Os meus pais detestavam aquele chinfrim e apenas uma vez me levaram a assistir ao espetáculo. Não sei ao certo se existiam leões, embora tenha uma vaga ideia de os ver numa jaula a rugir de tédio, mas lembro-me com nitidez do senhor na bilheteira que era o mesmo que apresentava os números e a menina do trapézio era a mesma que vendia maços de cigarros e guloseimas durante o intervalo num tabuleiro, numa habilidosa economia de recursos. Sem contar com a trapezista que era nova e luminosa no seu maillot de paillettes esvoaçantes como ela, tudo era triste, velho e decadente, e até os palhaços davam pena. Na segunda semana de janeiro a tenda era desarmada e a trupe partia para parte incerta. Os meus pais respiravam de alívio e o bairro voltava ao sossego habitual.
Quando vejo o candidato Ventura em debates ou em comentários televisivos, lembro-me do circo cujo nome a memória apagou e a minha imaginação indisciplinada de escritora começa a desenhar uma tenda na qual ele é o senhor que está na bilheteira e depois veste uma casaca de abas de morcego e apresenta as atrações para, logo de seguida, a trocar por uma mais curta e um chicote sibilante que o ajuda a domar as feras com garbo digno de um Manolete. Depois do triunfo eleitoral nas eleições legislativas e da derrota incómoda nas autárquicas, o líder do Chega percebeu que o partido era ele e abraçou as eleições presidenciais com o mesmo fervor com que vai a Fátima. Ventura quer tudo, e para ter tudo, ele tenta ser tudo. A cada sondagem as percentagens vão subindo a seu favor e neste momento é certo que chegará à segunda volta. Bem-vindos ao circo Ventura, o epifenómeno da política nacional que soube surfar a onda do descontentamento luso, captando entre os seus adeptos o Homem-Massa de Ortega Y Gasset, que toma como suas todas as dores do povo e faz de si o centro de todas as atenções. Só que este circo não é pequeno nem pobre, não irá desarmar a tenda em janeiro, nem desaparecer do mapa. A minha memória relembra o anúncio do Toyota Corolla, cujo slogan vendia que veio para ficar, e ficou mesmo. Aguardam-se as cenas dos próximos capítulos com a serenidade possível.

