O fenómeno parece estar a ganhar expressão entre jovens profissionais e tem impactos na saúde mental. A desmotivação e desinteresse prolongado, muito graças à falta de novos desafios e à sensação de que se está desaproveitado, tem vindo a despertar atenção (e preocupação).
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Há um fenómeno, que não é novo, mas que parece estar a ganhar expressão entre as gerações mais novas que estão no mercado de trabalho. Chama-se boreout – o nome resulta da junção entre “bored” e “out” – e é um estado de tédio extremo no emprego, quase em oposição ao burnout, que é causado pelo excesso de trabalho e pelo stress. A diferença é que no caso do boreout há uma desmotivação e desinteresse prolongado pelo trabalho, devido à falta de estímulos, de novos desafios e de oportunidades para o crescimento profissional. É quase como o presentismo, que acontece quando os trabalhadores vão trabalhar, cumprem o horário, mas funcionam abaixo das suas capacidades. Com impactos na produtividade e na saúde mental.
Mas comecemos pelo princípio. A origem pode estar, segundo Jaime Ferreira da Silva, presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia do Trabalho, Social e das Organizações da Ordem dos Psicólogos, “na rotina e na ausência de visão para os próximos tempos”. “Uma das coisas que angustia bastante os trabalhadores atualmente é a ideia, que é um viés cognitivo, de que aquilo que têm neste momento é o que terão até ao fim da existência. O que gera desânimo e angústia”, explica o psicólogo e consultor de empresas, que acrescenta: “Está muito relacionado, na minha perspetiva, com o FOMO (“fear of missing out”, que em tradução livre é o medo de estar a perder algo), numa época de hiperestimulação, em que o novo não quer dizer necessariamente melhor, mas quer dizer novidade. E há, por vezes, a expectativa de que a novidade tem de chegar todos os dias, o que num local de trabalho não é realista, o bom funcionamento da economia reside na consistência”. Lá iremos.
Ricardo, nome fictício, é fisioterapeuta, trabalha na mesma clínica desde 2021. Os vaivéns da vida levaram-no a formar-se nesta área, mudou de curso mais do que uma vez, tomado pela indecisão, até chegar ao destino final. Tem 30 anos, não foi difícil arranjar emprego, “há muito, precário, mas arranja-se”. “Trabalhei em quatro ou cinco empresas antes de chegar aqui, sempre à procura de melhor. Agora estou nesta clínica privada, que não tem convenção com o SNS.” Mas, aqui chegado, o tédio invadiu-lhe os dias. Para começar, trabalha sozinho, passa horas sem colegas a rodeá-lo, “que poderiam trazer perspetivas diferentes”. “Por um lado é bom, porque sou eu que giro tudo, por outro, sinto-me isolado e aborreço-me muito. Só contacto com pacientes e com a empregada de limpeza. Depois sinto que há muita falta de incentivos por parte da empresa, não só monetários, mas ao nível de salário emocional, de promoção do bem-estar dos funcionários, de um sentido de pertença. Sinto que não pertenço.”
A somar a isso, o trabalho é “sempre a mesma coisa”. “No mundo da fisioterapia, apesar de as patologias serem diferentes, a base é quase sempre a mesma. As pessoas procuram-nos sobretudo porque têm uma inflamação ou porque têm uma contratura muscular. É a falta de desafio que me aborrece.” De quando em vez, recebe atletas em pós-cirurgia. “É o que me dá alento, é muito mais desafiante ver a evolução, ver que o que era difícil há uma semana agora já são movimentos básicos, como dobrar o joelho ou o braço. Mas a procura da fisioterapia é muito porque dói as costas ou porque têm uma tendinite.”
A falta de perspetivas de que o futuro será diferente e a sensação de que não é valorizado empurrou-o para o desânimo, e para a falta de comprometimento. “É fazer só o que está previsto e não me chatear muito, é a tal falta do sentido de pertença.” Ricardo estava de tal forma desmotivado que decidiu fazer uma pós-graduação em Gestão e Direção de Unidades de Saúde, não quis ficar só a lamuriar-se. “Gosto muito do que faço, mas falta-me alguma coisa, tenho a sensação de que estou estacionado aqui, não tenho perspetiva nenhuma de fazer coisas diferentes, nem tenho ninguém a puxar por mim. E queria experimentar algo novo, abrir os horizontes. A pós-graduação nasce claramente da minha sensação de aborrecimento.” Para já, os estudos trouxeram-lhe algum ânimo, quer tentar levar novas ideias para a empresa. Talvez consiga.
Foquemos, pois, na questão geracional. Hoje em dia, o boreout parece encontrar-se com mais frequência nos Millenials e na Geração Z, de acordo com o psicólogo Jaime Ferreira da Silva. “Talvez seja fruto da época. Com o advento das redes sociais, sabemos que vamos ter sempre novidades quando vamos ao Instagram ou ao TikTok. E as redes moldam também a nossa representação da realidade, em que a novidade está sempre presente.” Mas, salienta, “a excelência na nossa espécie assenta na repetição e no aperfeiçoamento incessante”. “Seja dar uma tacada numa bola de golfe, tocar uma peça de piano ou redigir num jornal, para aprofundarmos qualquer gesto técnico temos de o repetir até à exaustão.” Ana Paula Marques, socióloga do trabalho e professora na Universidade do Minho, tende a concordar. “Isto parece-me resultar muito da mudança geracional. Há um investimento em formação que os jovens querem que seja muito rápido no sentido de retorno. E depois há pouca resiliência, dificuldade em resistirem para perceberem até onde aquele trabalho pode ir.” Ao mesmo tempo, reconhece, os jovens sentem que “não há desenvolvimento de carreira e que ficaram ali estacionados”.
A responsabilidade das empresas
Isto acontece, aponta a socióloga, “sobretudo em profissionais com muitas qualificações, mas a fazerem trabalhos pobres de conteúdo”. Ana Veloso, psicóloga do trabalho e das organizações, resume exatamente assim. “O boreout tem muito a ver com as pessoas terem mais competências do que as exigidas para o seu trabalho. Sentem-se enfastiadas, desaproveitadas, porque as tarefas que têm de realizar são demasiado simples e, às vezes, repetitivas para as capacidades que têm. Acontece muito com operadores de caixa de supermercado que são licenciados.” E vale a pena refletir sobre isto. “Temos uma população jovem mais qualificada, mas isso pode ainda não estar a ser internalizado pelas organizações, o que contribui para este aborrecimento e para a incapacidade das empresas em manterem os trabalhadores”, refere Ana Paula Marques.
Aliás, Jaime Ferreira da Silva admite que as organizações também têm responsabilidade. “O ser humano precisa de uma certa narrativa para aceitar as rotinas do dia a dia com mais entusiasmo e, por vezes, nas organizações falta esse enquadramento. O que acontece, muitas vezes, é que se focam no presente, em manter o que está e não se preocupam em construir uma narrativa que crie esperança de que o futuro não será exatamente a repetição do presente.” Essa narrativa por parte dos líderes, garante, é fundamental. “Têm de ser capazes de avaliar o estado de espírito das equipas, o seu nível de comprometimento e tentar alinhar os trabalhadores com a visão da organização.” Criar sentido de pertença.
Até porque, importa sublinhar, o boreout tem consequências a nível individual e também para a empresa. Sintomas como ansiedade, angústia, alterações de humor, segundo o psicólogo. E sim, “pode haver sintomatologia depressiva associada”. Além do desligamento do trabalho e da baixa produtividade. Sendo certo que este não é um fenómeno de agora, embora o termo seja recente, nem é um estado, como diz Ana Veloso, “só de profissões intelectualmente elevadas”. “Acontece com operários fabris, por ser um trabalho muito repetitivo”, ressalva. Porém, a síndrome poderá vir a ser cada vez mais expressiva em todo o mercado. “Isto vai acontecer cada vez mais com a introdução das novas tecnologias, que liberta os trabalhadores para outras tarefas, que implicam mais pensar. O problema é que essas não existem, as empresas não preveem isto. As organizações têm de se ajustar.”
Dito isto, há estratégias para lidar com o boreout. Do lado das empresas, sugere a psicóloga, “tornar o trabalho mais complexo, criar mais rotatividade, melhorar a comunicação entre chefias e trabalhadores”. Já o trabalhador “pode tentar criar distrações para preencher o dia de trabalho”. Jaime Ferreira da Silva dá ainda outra dica. “Podemos tentar ressignificar a repetição, não como monotonia mas como caminho para o aperfeiçoamento, para atingir a excelência. Para se ser um bom sushiman são precisos pelo menos cinco anos de prática diária. E se queremos comer bom sushi, vamos querer um sushiman com experiência.” Com uma certeza: “Cada geração é um novo país e também compete aos líderes das empresas acolher as expectativas que os mais novos trazem”.