Os conflitos são naturais, trabalham competências e testam limites. Quando os arrufos descabam e tomam conta dos dias, aí há problemas. E os pais são os adultos na sala. O que devem fazer? Interferir ou observar em silêncio?
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Uma situação. Pedro tem 11 anos, Miguel tem sete, são irmãos, os arrufos acontecem quando um quer o brinquedo do outro, quando um vai para a cama mais cedo, ainda por cima, dividem quarto. Desentendem-se quando um quer estudar e o outro brincar, vontades e horários não coincidem. Há dias em que os pais, mais cansados do trabalho, os separam. Cada um para o seu lado. Um no quarto e outro na sala para evitar berros e lágrimas.
A ligação entre irmãos é única, para toda a vida, com momentos intensos, ora mais agitados ora mais calmos. “As relações de fratria envolvem, de uma forma geral, a expressão de afetos, agradáveis e desagradáveis. Como muitos pais dizem, os irmãos têm, muitas vezes, uma relação de ‘amor-ódio’, ora juntos e muito amigos, ora ‘como cão e gato’”, observa Rute Agulhas, psicóloga clínica, psicoterapeuta, terapeuta familiar. “Estas brigas são entendidas como normais no contexto de uma relação entre pares e de elevada proximidade, física e emocional”, acrescenta.
Tânia Gaspar, psicóloga clínica, professora universitária, realça essa ligação. “Os irmãos são uma relação privilegiada, um laboratório social para trabalhar competências.” Há, porém, aspetos que os pais devem ter em conta como a diferença de idades, as capacidades e a maturidade de cada filho. Entender as diferenças nas formas de ser, nas maneiras de reagir, é fundamental. Um filho mais frontal, que diz tudo, que berra, que grita. Um filho mais dissimulado, mais contido, que faz uma rasteira e assobia para o lado, que belisca nas costas e finge que não é nada com ele. “Os pais têm de parar e observar os filhos que têm”, aconselha Tânia Gaspar.
Gerir emoções nem sempre é fácil e Rute Agulhas lembra o que acontece. “Nas relações com os irmãos, as crianças podem experimentar diferentes formas de relacionamento interpessoal e testar os limites, aprendendo a gerir conflitos num ambiente mais seguro e protegido. À medida que crescem, a família abre-se progressivamente ao exterior e estes mesmos modelos relacionais podem ser experimentados com os seus pares, noutros contextos.”
Outra situação. Maria tem 15 anos, o irmão Francisco nove, todas as semanas, os desentendimentos do costume, porque ele não arruma, porque ele não a deixa sossegada no telemóvel, porque ele não entende porque ela não quer brincar. Os pais tentam acalmar a situação, conversam com os filhos, juntos e separadamente, querem perceber os pontos de vista, querem amor e harmonia.
É preciso apagar os fogos, resolver conflitos, respirar. Há formas de chegar a consensos. “Os pais devem apoiar a resolução, parar, descer ao nível das crianças, deixá-las expor as duas situações, uma de cada vez, sem gritar. Chegar a um compromisso com os dois irmãos para que fiquem bem”, nota Tânia Gaspar. Por vezes, há birras com um irmão apenas para chamar a atenção e tentar puxar os pais para um lado. Isso não pode acontecer.
Ou um para cada lado e já está? Também não pode ser. “Muitos pais sentem dificuldades em gerir estas brigas de irmãos e acabam, por vezes, por ser pouco justos. É frequente ouvir-se que ‘agora castigo os dois, não quero saber de quem é a culpa’, o que acaba por ser uma reação que é sentida como verdadeiramente injusta para as crianças”, adianta Rute Agulhas.
Com carinho e assertividade
Mais uma situação. João tem 16 anos, a irmã Catarina tem 11, ele não tem paciência para a conversa dela, ela não percebe porque é que ele já sai à noite com os amigos, os gostos não coincidem, é uma guerra constante por causa da música, da televisão, dos lugares no sofá, quem toma banho primeiro e quanto tempo se demora na casa de banho. O ambiente não melhora às refeições e os pais dão um berro.
A adolescência é uma fase de independência e afirmação, esticar limites, experimentar o que é novo. Afrontar também. Quando a diferença é curta, o irmão mais velho desbrava caminho, o seguinte apanha boleia, é normal que se peguem e amuem, porque um faz uma coisa, o outro não pode, um não podia e o outro já pode, não é justo, e por aí fora. “Os irmãos acabam por aprender uns com os outros”, constata Tânia Gaspar.
Outra situação. Gonçalo tem seis anos, a irmã Ana tem três. Ele não acha piada às gracinhas da irmã, ela não entende porque ele fala mais alto com ela, para ela parar de saltar em cima do sofá, ela não sabe por que razão ele está sempre à volta dos livros da escola, ele grita para que ela não ande sempre atrás dele. Mãe e pai não sabem o que fazer, esperam que seja uma fase passageira.
Os pais têm de perceber as dinâmicas familiares e não se podem esquecer de que são os adultos na sala. E não só. São um espelho. “Os pais devem lembrar-se que são os principais modelos dos filhos e que devem dar um exemplo positivo. Se eles mesmos resolverem os conflitos a gritar ou a bater, acabam por ensinar aos filhos que é legítimo resolver as divergências de forma agressiva. E não é essa a mensagem que lhes queremos transmitir”, avisa Rute Agulhas.
Tânia Gaspar também toca nesse ponto. Os filhos aprendem de várias maneiras, uma delas é pela observação dos comportamentos dos pais. Se, por exemplo, o tom de fala é hostil, ríspido, agressivo, crianças e jovens tendem a replicá-lo. “Os pais devem observar o seu próprio comportamento porque são o modelo, mais pelo que fazem do que pelo que dizem.”
Como atuar? “Com carinho, mas com assertividade, sempre na base do respeito pelo outro”, responde Tânia Gaspar. Com amor, mas com limites. Os pais devem estar atentos, supervisionar, perceber se os filhos estão bem, reafirmar, vezes sem conta, o amor, a confiança, a proteção no chão seguro de casa. “Com carinho, afeto, tolerância. E nada melhor do que tudo isso acontecer no seio da família.” A assertividade, realça Rute Agulhas, desfaz desentendimentos. “Os pais devem ajudar os filhos a tentar resolver os conflitos de uma forma mais assertiva, conversando sem gritar e aprendendo desde cedo a partilhar, a saber esperar e a negociar.”
Há irmãos problemáticos, um que dá mais dores de cabeça, porque é mau aluno, porque bebe, porque não quer saber. Os pais sentem que têm de dar mais atenção a esse do que ao outro, que é bem comportado, mas que, a certa altura, pode revoltar-se e ter comportamentos estranhos para chamar a atenção ou então passar despercebido para evitar mais discussão. Uma criança que se anula não é bom, alerta Tânia Gaspar, até pelas repercussões futuras. “Quando há um filho que precisa de mais atenção, não se pode esquecer o outro.” Pais e filhos podem fazer atividades conjuntas, em família, entre irmãos. Os pais têm de perceber que os filhos são dois seres diferentes em várias dimensões.
E, atenção, nada de comparações. “A ideia de comparar dois irmãos é péssima, ter muito cuidado para não o fazer”, refere Tânia Gaspar. Por outro lado, a autorregulação de crianças pequenas é um processo complexo, por isso, os gritos, o choro, o descontrolo. “A emoção toma conta de tudo, negociar é impossível, por isso, é preciso perceber o nível de desregulação a que chegam”, refere a psicóloga e professora.
Viver debaixo do mesmo teto tem destas coisas e os dias não são todos iguais. “Até certo ponto, as discussões entre irmãos podem ser ignoradas, de modo a não reforçar com atenção extra e, ao mesmo tempo, dar algum espaço para que, entre eles, aprendam a gerir as suas diferenças”, adianta Rute Agulhas. A questão é quando a briga descamba e é grave e é frequente. “Se a situação escalar os pais devem intervir, contendo e separando fisicamente os irmãos para que não se batam e, depois de acalmarem (não no auge da discussão), conversarem sobre o que se passou, tentando perceber a situação concreta”, acrescenta.
Tolerância zero, portanto, para qualquer tipo de violência. Há comportamentos inaceitáveis: ofender, humilhar, bater. “Em termos de consequências, é importante que quem agride, não apenas peça desculpas, mas também possa reparar, de alguma forma, o outro que foi lesado (por exemplo, durante x dias tem de fazer uma tarefa pelo irmão).” “Quem agride deve ainda perder algum tipo de privilégio ou recompensa, para que interiorize a relação entre comportamento e consequência (alguns dias sem algo que é, para si, muito importante como, por exemplo, o acesso aos ecrãs)”, acrescenta Rute Agulhas.
Os conflitos evitam-se, é certo. Para isso, é preciso tempo e disponibilidade para escutar o que os filhos sentem, o que têm a dizer.