Cidadania Impura
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Casou-se aquela mocinha arreliada que abria as gavetas todas como se quisesse escavar até ao Japão. Não sei que raio queria ela de dentro dos armários e de atrás das portas, mas tudo lhe servia de passagem para mais adiante, porque a casa inteira aberta não era suficiente. A Bruna procurava à pressa e não permitia que lhe impedíssemos os gestos, davam-lhe uns estremeções que poderiam deslocar o eixo da Terra. Mais abria gavetas e mais entornava tudo pelo chão a ver como eram destroços as relíquias guardadas dos adultos. A mim, dava-me um medo que era só visto. Naquela altura, eu não entendia nada das novas infâncias. Usava a memória para medir a normalidade e a normalidade não presta para a infância de ninguém. As crianças devem ser convidadas para o País das Maravilhas. E toda a vida deveríamos lutar para que não saiam de lá.
A minha mãe obriga-me a acreditar no casamento das crianças da família, mas dá-me nervos que o tempo corra. Corre tanto que ainda não apreciei muitos dos instantes que já foram, como se perdidos para depois de corpos que partiram. A minha mãe, que adora casamentos e adora comprar vestidos lindos e ir à cabeleireira, mandou-me ficar feliz quando as crianças da família se casam porque elas estão com mais de 30 anos de idade e é bom que casem. E eu estou feliz, só que também estou atónito.
O problema dos adultos, está bom de ver, é o de saber se fomos capazes de construir o País das Maravilhas para as nossas crianças. Quero muito olhar para a igreja e pensar que ela está no centro da maravilha, aperaltada de santos felizes e cheios de milagres em favor do amor, da saúde, da paz, do sonho, da beleza humana, justa e livre. Casou-se a Bruna com o Ricardo e agora parecem o presépio, ajeitadinhos e feitos de ideias para melhorar a vida, com muito bailarico e canções chinfrineiras da Ivete Sangalo. A Bruna tem uma alma com alarde, não sei a quem sai. Parece inventada por um filme musical, daqueles em que as pessoas começam a cantar no meio das conversas como se fossem malucas.
Que alegria profunda, a de vermos como o sentido superior da vida se consuma, porque o encontro entre quem se ama é o lugar de criar o divino que nos compete. A Bruna e o Ricardo agora são o extremo da humanidade, são o lugar do divino. Eu não poderia esperar mais, esperar melhor para a mocinha toda curiosa para quem a vida foi sempre uma urgência para chegar ao seu sonho. Um sonho caro que apenas alguém tão bravo poderia ter comprado. E a Bruna comprou. Fico feliz. Muito feliz. De algum modo, tudo hoje oferece maravilha.