"Pai aos 50" é um espaço de opinião semanal assinado pelo escritor Joel Neto.
Corpo do artigo
Conheço outras pessoas assim, ou que me permitem pensá-las assim, mas o melhor exemplo é aquele leitor. Desde que a livraria abriu, já nos visitou umas quatro vezes: foi sempre indiferente ao Artur. Bebemos cerveja juntos, com o Artur rabiando em volta: não desviou o olhar. Trouxe-nos presentes, uma antiguidade para o senhor e um lenço para a senhora: nem um rebuçado para o pequeno. O seu mundo é o dos adultos. Se chegar a reconhecer a existência de uma criança, será como empecilho. Interessamos-lhe nós, a Marta e eu. Sobretudo eu, que a Marta é nova - ainda há poucos anos haveria de ser ela própria um empecilho.
Mas não é o caso deste casal. Este casal não vê o Artur como um breve obstáculo, noutro contexto uma escassa irrelevância: este casal detesta a existência do Artur. Está no restaurante, a duas ou três mesas de distância: algures entre os 65 e os 70, ele com ar triste, ela evidentemente contrariada - ambos irritados por terem de jantar perto de crianças. As crianças fazem barulho, pedem coisas, aparecem de onde menos se espera. Aquele caracolhinhos, então, é insuportável. Acabou de jantar e pôs-se logo a circular pela sala, empurrando aquela estúpida ementa com rodinhas por entre as mesas. Oh, sim, como é irritante aquele miúdo: guinchando, chamando a mãe, quezilando porque lhe pedem que se sente, rindo a bandeiras despregadas porque quase fez a empregada baixinha deixar cair os chicharros.
Tenho muita pena deles. Detestam um menino e querem que os pais o saibam. Respiram fundo. Reviram os olhos. E eu pergunto-me o que os trouxe até aqui, uma mulher e um homem sentados frente um ao outro, detestando as crianças em volta. Foi o quê, um filho na droga? Uma desavença familiar? Anos de fertilizações fracassadas? Ou é uma coisa que já os acompanha há tanto tempo que nem seria possível determinar as suas causas? Seriam já assim os dois quando ainda nem eram um casal? Foi o encontro entre os ambos que provocou a faísca desse asco? Terão lutado contra ele ou aceitado a sua inevitabilidade - talvez até a sua conveniência, o seu alívio? Estarão conscientes dessa repulsa sequer? Que dor, que tragédia, que incompletude os terá destruído? Onde encontrarão ainda as forças para se levantarem de manhã, se lavarem tão bem, se vestirem tão bem, se dominarem tão bem nos seus gestos elegantes e cruéis?
Custa-me olhar para eles. Quero abraçá-los tanto quanto empurrar a mesa contra eles, despertá-los, insultá-los. Já pelo tal leitor que nos visita, indiferente, não: por esse não sinto nada. Se estou na livraria quando desembarca, tudo bem; se tenho uma encomenda para ir levantar aos Correios, nem penso duas vezes.