Pai aos 50
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A foto tem a alvura e a desolação de uma página em branco. A meio está o meu amigo Pedro Rui, de pé sobre um pequeno escadote, com o berbequim apontado ao tecto. Rodeiam-no uma caldeira de aquecimento, uma máquina de lavar roupa e a vidraça impressa de uma marquise remodelada em conjunto com o restante apartamento. No primeiro plano estão um estendal e uma vassoura, encostados à parede sob os vestígios de um velho prego que em breve será substituído para receber um quadro de uma viagem de finalistas à Tunísia. Alguém vai começar a viver.
É a Luísa. Toda a vida quis ser médica e agora é médica. Mesmo o facto de a certa altura ter abandonado a ideia de ser ortopedista do Benfica, com que nos melgou a juventude inteira, deve ser colocado na folhinha dos feitos. Está uma mulher, linda como se previa, o que não a impede de se manter adoravelmente próxima dos pais. Vê-se as fotos daqueles quatro em férias, calcorreando o globo terrestre – ela, o Quico, a Namaria e o Pedro Rui – e só se pode desejar uma família assim. O que inclui, como é evidente, saber-se aceitar que há um dia em que as crias devem emancipar-se.
Quão auspicioso não é esse momento na vida de uma pessoa, a primeira casa? Que esperança, e que inocência, e que medo, e que coragem, e que alegria não se concentram ali? Que concretização, que intimidade e que nostalgia não levamos connosco, enquanto montamos o nosso mobiliário de má qualidade, e sonhamos povoá-lo das nossas bugigangas da infância, e convidamos aqueles que também poderiam ser nossa família, se fôssemos nós a escolher, para lhes servir aquele frango com limão no rabo que um dia experimentámos a partir de uma receita, ou o spaghetti carbonara que a nossa namorada de faculdade fazia?
Hei-de lembrar-me sempre da minha semicave em Cascais, cinquenta contos pagos até ao último dia do mês anterior, com escotilhas a fazer de janelas e uma grande estante onde pude ordenar os meus livros pela primeira vez. Nem a cobertura no Seixal, que comprei depois, nem nenhuma outra casa, na verdade – nem sequer, de vários pontos de vista, aquela em que vivo hoje, e que era a do meu avô amado, mas que nunca foi essa folha em branco –, se lhe poderia comparar.
E a primeira casa do Artur, como será? Onde será? Como a decorará ele? Meu Deus: e chegarei eu a vê-la? Eis uma vertigem que me assalta de repente: e se eu já não tiver vida suficiente para pegar no meu berbequim, subir a um escadote e ajudar o meu filho a instalar-se na sua primeira casa? Mas escolho simplesmente pensar que, sim, que quero vê-la e que vou de facto vê-la, organizá-la com ele, mobilá-la com ele. A partir de certa idade, a maneira como escolhemos pensar é o mais importante de tudo, e em particular para um homem na minha situação.