"Cidadania Impura" é um espaço de opinião semanal assinado pelo escritor Valter Hugo Mãe.
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O Cebolinha foi sempre a minha personagem favorita da Turma da Mónica. Por não falar direito e ser azarado, produz em mim um carinho grande. Também por ter aquele cabelo espetado que não traz ordem nem charme. O charme do Cebolinha é ser todo desajustado. Um certo aflito.
As personagens de Maurício de Sousa são comoventes porque todas partem de alguma aflição, até Mónica, não é mais do que uma menina procurando lugar num sistema que espera que ela seja outra coisa, desde logo, submissa e feminina. Ela, contudo, necessita de ser como é.
Maurício de Sousa acaba de completar 90 anos de idade e foi minha sorte estar a um metro dele no dia em que estreou o filme que conta parte da sua vida. Na confusão daquela noite, e na confusão da idade, julgo que Maurício viu sobretudo para dentro de seu mundo, buscando na multidão suas crianças, essa gente com quem sempre quis criar a sociedade de seu sonho. Eu, que fiquei escalado para uma fotografia com ele, segurava meu Sansão, sim, o coelho azul com que Mónica enfrenta a vida. Maurício, absorto diante dos adultos que o fotografavam com seu filho, não reagia, quando súbito viu Sansão e acenou sorrindo como se encontrasse por fim um amigo.
Acenou ao meu coelho, pendurando em minha mão pelas orelhas, como uma arma de ternura. Eu, ainda que aquele homem não me cumprimentasse a mim, acenei de volta, agitei o coelho, sorri. Entendi que aquele instante me ofereceu o testemunho de uma conexão entre Maurício e suas personagens que me comoverá para sempre. Ali, por um segundo, ele estava presente de verdade, inteiro.
Saí sem foto. Saí com minha infância muito perto, o Cebolinha falando tudo errado e, ainda que sem ter dado certo, junto comigo numa amizade assim mesmo. Preparados para tudo, como aflitos que vão enfrentar o que for preciso. Maurício de Sousa ajuda gerações por mostrar como todos somos de algum jeito e isso nos destina, mas todos podemos influir convictos de que nossa história nos compete. Nossas aflições também são nossa identidade e reclamam respeito.
Não bati em ninguém com o coelho. Bati no peito, apenas. Ainda reconheço que as coisas lindas da infância me educam. Estou sempre a aprender.

