"Cidadania Impura" é um espaço de opinião semanal assinado pelo escritor Valter Hugo Mãe.
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A Cecilia Bartoli tem mais ossos nas mandíbulas do que o comum dos mortais. O modo como abre e fecha a boca revela ângulos que apenas Picasso normaliza. Para fazer Rossini como faz, só com mutações que lhe alteram a humanidade. Enfim. E eu nem gosto nada do divertido de Rossini. Fico logo enjoado da gracinha de cantar para rir, mas não é qualquer coisa ver a senhora Bartoli a trazer do impossível cada nota e cada resto de oxigénio.
De todo o modo, escutar Händel ou Scarlatti, escutar Puccini ou Bellini, é outra coisa. Os ataques suavíssimos, irrepreensíveis, o começo da voz mais pura do Mundo, a educação plena dos pulmões, domesticados ao limite, para que possam planar sem atrito, animais que flutuam. São pulmões que flutuam. E, ainda que tenhamos ouvido mil vezes cantar "Lascia la spina", nunca é indiferente, nunca é menos do que perfeito o seu jeito de o fazer num pio delicadíssimo, uma cristalina coisa de ouvir, a quase luz que a boca faz. Não se ouve sem pasmo. Cecilia Bartoli pode ser tão completa quanto uma pintura de Botticelli ou um poema de Adélia Prado.
Bartoli é a voz da canção que mais ouço desde há dez ou quinze anos. Ouço como lamenta ser desprezada por um marido que não a valoriza, infiel, atento em como parece esquecer de respirar, em frases longuíssimas, anormais, exactamente porque assim acontece com quem morre ao abandono, no fim de um amor que não inclui mais. Bartoli é perfeita. Como dizer? Ela consegue a perfeição, e isso é abençoado por um timbre de grande beleza.
Em alguns dias, não consigo mudar de companhia. Fico em suas canções antigas até aos barrocos, e quero que as ruas sejam corredores apalaçados por onde todos possamos caminhar na esperança de uma melancolia maravilhosa. Uma que nos deixe felizes sem perdermos a noção da profundidade das coisas, das boas e más, das perdas, dos desejos, dos medos, das virtudes e dos defeitos. Cecilia Bartoli, que tanto me convence de ser tão comum quanto as mulheres que conheço, também não é comum porque canta como ninguém. É uma mulher comum em cuja garganta mora uma deusa. Nenhuma deusa pertence à normalidade. É isso. É o que eu queria dizer.

