Clubes de leitura. O amor aos livros, partilhado e debatido
No Fundão, leem-se obras dentro e fora da biblioteca e constroem-se partituras com poemas. Em Santa Maria da Feira, quatro grupos seguem os seus ritmos, mães e pais com filhos, gente numa roda no chão, obras densas, reflexões em inglês. No Algarve, nasceu a ideia de reunir uma comunidade online que não pára de crescer. No verão passado, Cristiana Rodrigues criou o Picnic Book Club que acontece em jardins, cafés e livrarias do Porto. Há procura e há oferta.
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Março de 2016, primeira sessão do Clube de Leitura da Biblioteca Municipal Eugénio de Andrade, no Fundão, falou-se do livro "Manhã submersa" de Vergílio Ferreira. O encontro era vontade dos leitores, aconteceu, nunca mais parou. Às quintas-feiras à noite, uma vez por mês, na terceira ou quarta semana, debate-se uma obra literária na sala de leitura ou fora dali, num hotel, num café, num restaurante, numa livraria. "O que nos uniu foi o amor aos livros, à literatura", conta Dina Matos, coordenadora da biblioteca.
O plano é fluído, o grupo junta habitualmente 25 pessoas, um dos dinamizadores é o escritor Manuel da Silva Ramos. Há muita coisa a acontecer, passeios literários, visitas às casas-museus de escritores, um casal venezuelano revelou ter conhecido Gabriel García Márquez, convidam-se autores, Laborinho Lúcio é a próxima presença, faz-se um jantar de Natal no meio dos livros. Dina Matos participa e aprecia o que acontece. "Ninguém sabe mais do que o outro, é a partilha pela partilha. A amizade que se cria é o elo mais forte que os clubes permitem."
Ana França deixou a zona de Mafra para viver no Fundão, bateu à porta da biblioteca para propor a criação do Coro de Leitura em Voz Alta. Recebeu um sim de braços abertos. Às terças-feiras, às 18.30 horas, 22 pessoas, mais mulheres do que homens, de faixas etárias alargadas, encontram-se com um amor em comum. "Fazemos trabalhos de corpo, de voz, de respiração, depois leituras, coreografamos a partitura, a nossa forma de abordar o texto", descreve Ana França. Leem essencialmente poesia.
Na Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira, em quatro momentos, nasceram quatro clubes. O primeiro, o Clube de Leitura, surgiu não muito longe dali, do hospital da cidade passou para o espaço rodeado de livros em 2017, que acontece de dois em dois meses, geralmente às quintas-feiras, com início às oito da noite. Fernanda Jacinto está desde o início. "Cada um faz a sua leitura em casa, traz as suas ideias que são discutidas entre todos." Decide-se o livro, normalmente denso, normalmente fora do circuito convencional.
No Fundão, a biblioteca municipal abre as portas para encontros, reflexões e leituras em voz alta. Os leitores também se envolvem em iniciativas e visitas literárias
Ricardo Martins, um dos elementos mais recentes, chama-lhe "tertúlia noturna". "Vim à procura de um espaço que me desafiasse a ler coisas fora do mainstream, que me ajudasse a pensar e a refletir de forma diferente, apreciar de uma forma crítica, conhecer pessoas." E faz uma observação. "A vida está a rodar tão rápido, esta geração está um bocado limitada pelas redes sociais."
Mas ali há um momento para os mais novos, o Clube de Leitura para Pais e Filhos, o segundo a nascer em maio de 2023, que acontece no segundo sábado do mês, às 11 horas, para crianças dos três aos oito anos com mãe ou pai, ou ambos, a acompanhar. Joana Ribas orienta as sessões, escolhe o livro, lê-o em voz alta, não é preciso lê-lo em casa, depois há atividades, jogos de tabuleiro, pintar vasos e semear plantas, desenhar, fazer bolachas ou panquecas na cozinha da biblioteca. "A bruxa Mimi" foi o último livro, a seguir fizeram gelados.
"Desde que sou mãe, descobri o mundo maravilhoso dos livros infantis. O livro é uma ferramenta espetacular, uma maneira de estimular o foco", diz Joana Ribas. E de descobrir o mundo. "A ideia de viajar sem ir a lado nenhum."
Carla Abelha traz a filha Matilde de seis anos com regularidade ao clube e à biblioteca, requisita livros com frequência, os encontros abrem horizontes. "A história é sempre contada de uma maneira diferente, o livro é uma ferramenta muito importante. A contextualização para situações do quotidiano, para ultrapassarmos questões na educação dos nossos filhos, é muito positiva", observa. A pequena Matilde anda contente.
A Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira disponibiliza quatro grupos, cada um com as suas características, o seu público, a sua essência. Ricardo Martins, Rui Costa, Fernanda Jacinto, Carla Abelha e Isabel Ferreira na fila de trás, da esquerda para a direita, Katherine Decina, Joana Ribas e Rita Andrade à frente envolvem-se nas sessões
Em agosto de 2020, tempo de pandemia, Analita dos Santos, ativista literária, escritora, formadora do ofício da escrita, e David Roque, licenciado em História e formador em escrita criativa, lançaram o clube de leitura online "O prazer da escrita", a partir do Algarve. Ela em Portimão, ele em Lagos, unidos pela amizade e pelo amor aos livros. O clube começou tímido, ganhou corpo e raízes. Cinco anos depois, reúne uma comunidade de seis mil leitores num grupo no Facebook, tem sessões com dezenas ou centenas de pessoas de várias partes do país, alguns portugueses no estrangeiro, contou com presenças especiais de escritores como Ana Luísa Amaral e Nuno Júdice, que já partiram. Lídia Jorge, Gonçalo Cadilhe, Afonso Cruz, Maria Francisca Gama, Rita Canas Mendes, entre outros, também participaram pro bono, entraram no Zoom, falaram das suas obras. Os encontros, à distância, acontecem uma vez por mês ao sábado à noite e as inscrições são gratuitas. O último foi a 19 de julho, o próximo será a 16 de agosto com "Bambino a Roma" de Chico Buarque.
Doze livros, 12 meses, um tema por ano, 2025 é dedicado a uma viagem ao Mundo com os livros. "Viemos dos Estados Unidos, agora vamos para o Brasil, depois para África e terminamos na China", anuncia Analita dos Santos. "E não procuramos só os livros que estão no top."
O ambiente é informal, a dinâmica é simples. A sessão abre com Analita dos Santos a apresentar o escritor, e alguns aspetos curiosos ou menos conhecidos da biografia, a seguir David Roque faz uma resenha literária, detalhada e crítica, e o debate desenrola-se. "Abre-se a temática, concorda-se, discorda-se, cada pessoa lê um livro de forma diferente", repara David Roque. "O anzol inicial é agarrar os leitores pelas emoções." E depois descascam-se camadas emocionais, filosóficas, sociológicas. No fim, tira-se uma fotografia de grupo com o livro nas mãos.
Ideias e experiências
Cristiana Rodrigues lê desde criança, o pai lia-lhe histórias antes de dormir. Ela cresceu e lia para o irmão mais novo, sempre rodeada de livros, o romance "Orgulho e preconceito", de Jane Austen, marcou-a na adolescência. Entrou em clubes de leitura, mas a pouca regularidade, a discussão apenas de livros e não de temas, as obras escolhidas, levaram-na a desistir. "Não houve o clique", justifica. Procurava um clube com um pendor mais político, que os debates escavassem temas densos, sociais, atuais. Gravou um TikTok com a ideia de um clube, piqueniques, discussão de livros feministas. O vídeo disparou, ganhou alcance e projeção.
No verão passado, criou o Picnic Book Club, clube de leitura feminista, que acontece em jardins, cafés e livrarias do Porto no último sábado do mês, pelas três da tarde. Estendem-se toalhas e mantas no chão, leva-se comida para petiscar, forma-se uma roda no chão, Cristiana faz as honras da casa, quebra o gelo quando há novos participantes, faz uma introdução ao livro, ao autor, uma contextualização social, cultural e histórica, e modera a conversa. Já se debateu "Orlando" de Virgínia Woolf, "Novas cartas portuguesas" de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa.
O clube está como pensou, abordam-se temas sociais e políticos, desigualdade de classes, racismo, questões de género, sexismo. Cristiana Rodrigues gosta quando se extrapola o livro, se extravasam páginas e se partilham experiências. "É um clube acessível a toda a gente, que representa o sentir de comunidade." Neste momento, tem 90 membros e 120 pessoas em lista de espera. Vem gente do Porto e redondezas, Braga, Aveiro, Vila Nova de Cerveira, dos 18 aos 70 anos.
O Book Club é outro clube da Biblioteca da Feira, o terceiro a surgir, em julho do ano passado. Katherine Decina é americana da Califórnia, fez a proposta, prontamente aceite, e dinamiza as sessões às segundas terças-feiras do mês. "Falamos sobre livros, que podem ser lidos em qualquer língua, o debate é em inglês." O livro é escolhido com dois ou três meses de antecedência, Katherine quer melhorar a presença remota dos participantes via Zoom. Rui Costa está neste e no Clube de Leitura, fluente em inglês, começou a ler banda desenhada nessa língua há oito anos. Aprecia a imersão nos livros, chegou ali por vários motivos. "Para sair da minha zona de conforto, socializar, conhecer novos livros e pessoas."
"Chá das 11" é o mais recente, começou no início deste ano, acontece no primeiro domingo de cada mês, às 11 horas, numa roda no chão com gente descalça na sala do conto da biblioteca feirense. Não há livros escolhidos, nem leituras para casa. Cada pessoa partilha o que quer, um livro que leu, uma frase que ficou, um filme que viu, um espetáculo que assistiu. A ideia surgiu de três amigas, estudantes universitárias, em faculdades diferentes, que se encontram na biblioteca para estudar e conversar. Rita Andrade, aluna de mestrado em Escrita Criativa, em Coimbra, revela como surgiu. "Gostamos de ler, a biblioteca é um espaço que frequentamos, é uma forma de nos encontrarmos na nossa cidade natal."
Isabel Ferreira acabou o curso de Línguas e Relações Internacionais, no Porto, anda a pensar no mestrado, gosta desses encontros sem alinhamento pré-definido. "Não trago nenhum livro, falo do que me lembro. Não somos obrigados a partilhar, falamos se quisermos, é muito relaxado, é uma conversa." No fim, há chá e bolos, alimenta-se o Instagram com fotografias, sugestões de leitura. Rita sai de coração cheio, com aquela sensação boa de que vale a pena.
Cristiana Rodrigues criou o Picnic Book Club há um ano, o primeiro aniversário foi celebrado no mês passado com toalhas no chão, partilhas e debates sobre temas sociais e políticos. É um clube de leitura feminista que circula pelo Porto
Mónica Gomes, diretora da Biblioteca da Feira, agradece a dedicação generosa e voluntária dos dinamizadores e destaca a socialização e a inclusão, a diversidade dos grupos. "É muito interessante para estimular o sentido crítico, o poder de argumentação, o falar em público, além de promover o livro e a leitura. Não se fala só de um livro, fala-se do país, da História, de problemas sociais e da atualidade." Está satisfeita e feliz. "É sinal de que o nosso trabalho nesta área tem reflexos."
Dina Matos e Ana França também estão contentes com o percurso. Em setembro, o Clube de Leitura volta a reunir-se, as leituras de férias darão o mote, e começa a preparar-se para a participação na peça que a EsTe, companhia de teatro do Fundão, está a construir em torno do livro "O processo", de Franz Kafka, para subir ao palco em novembro. "O clube vai acrescentar conteúdo a essa peça", adianta Dina Matos. Um desafio e um motivo de orgulho.
Analita dos Santos não esconde as intenções do clube online, pioneiro na altura, que recebeu o apoio institucional do Plano Nacional de Leitura. "Chegar a leitores não habituais e trazer pessoas que deixaram de ler." É um clube que, por vezes, sai do seu formato online com os dois curadores e mentores a apresentarem obras na Feira do Livro de Lisboa e no festival literário Utopia, em Braga. Tudo por amor aos livros. E à vida.
Nos encontros online do clube "O prazer da escrita", abre-se o debate depois de uma resenha literária ao livro escolhido. No fim, tira-se uma fotografia ao livro debatido pela comunidade virtual