Khadija Behzad fez mestrado, lançou o próprio negócio, é solteira por opção, viaja pelo Mundo. Sara Yousef estudou Belas Artes, é casada, não tem filhos, pode divorciar-se. No emirado árabe dos arranha-céus, de regime islâmico conservador, há avanços sociais e políticos a acontecer, com a igualdade de género na agenda.
Corpo do artigo
Os termómetros denunciam quase 35 graus lá fora, Khadija Behzad está no interior do restaurante Al Fanar, em pleno Dubai, com tudo preparado sobre uma mesa comprida. Há vários óleos espalhados, de amber, mashmoom, musk, oud, além de frascos cobertos de detalhes exuberantes, à boa moda da cidade. Vai ensinar a fazer perfumes árabes, uma das experiências que a empresa Meet the Locals, que ela própria abriu, oferece a turistas. Khadija é nascida e criada nos Emirados Árabes Unidos, tem 39 anos, sorriso doce, a pele bronzeada e imaculada, os cabelos cobertos pelo hijab negro, como manda a religião, abaia a condizer, típica da cultura emirati. É empreendedora, tanto que já se aventurou em vários negócios, este é o mais recente. “Percebi que não temos guias turísticos emiratis e que aqui não há muita oferta de experiências emiratis autênticas, então decidi começar a minha própria empresa”, desbobina. O caso num país onde reina uma monarquia teocrática, um regime ditatorial assente no islamismo, pode gerar alguma estranheza, Khadija sabe disso. “Há muitas ideias sobre o nosso país, acredita-se que as mulheres não terminam a sua educação, que somos forçadas a vestir-nos assim, que não podemos conduzir. Mas a mentalidade tem vindo a mudar muito, as políticas têm vindo a adaptar-se aos novos tempos.”
Os Emirados estão a abrir a porta a pouco e pouco, a igualdade de género a entrar em campo. Em 2024 as mulheres representavam quase metade da força de trabalho total, eram 68% dos funcionários do setor público, 70% dos formados em universidades. Khadija licenciou-se, aliás, tinha aulas à noite enquanto trabalhava de dia numa grande promotora imobiliária, no âmbito de um programa do Governo para os jovens ganharem experiência. Ainda fez mestrado em Negócios Internacionais, depois foi professora universitária, começou a dar aulas tinha 25 anos, ajudou a lançar a primeira incubadora de startups de base académica no Dubai. Conduz, tirou a carta cedo, à conta de uma família de mente aberta, outras há mais conservadoras. Viaja pelo Mundo, já lhes perdeu a conta, mas é capaz de conhecer mais de 25 países. Muitas vezes, em viagem, não usa abaia, embora a adore. Quando está só com os pais e os irmãos, também não. E é solteira por opção, “algo que hoje em dia é menos malvisto”.
“Na verdade, temos muitas oportunidades aqui nos Emirados, até podia ter ido estudar para fora, o país oferece bolsas de estudo a emiratis. E no emprego há muita paridade, temos muitas mulheres em cargos de liderança.” Sendo certo que os emiratis são menos de 10% da população do país (o resto dos habitantes são expatriados e não é possível conseguir a nacionalidade emirati) e gozam de um estatuto social alto, com uma série de direitos. Acesso gratuito à saúde, educação, formação superior, apoio financeiro para casar, para comprar casa. A maioria trabalha no setor governamental, em cargos de poder. “Mas também há muitos a criar negócios, mulheres e homens. Toda a gente tem redes sociais e elas deram-nos acesso a um mundo de ideias.” Um acesso que os media não dão, não há liberdade de expressão nem de imprensa, por isso mesmo Khajida não acredita em tudo o que lê. “Muitas vezes, as notícias não são verdade. Lembro-me da primeira vez que fui aos Estados Unidos, ia com receio pelo que ouvia nos media, mas quando lá cheguei toda a gente foi muito amigável, algo completamente diferente do que os media nos dizem.”
Na realidade, no Dubai dos arranha-céus, banhado pelo Golfo Pérsico, respira-se um espírito ocidental em cada canto e esquina, estrangeiros e locais convivem pacificamente, mulheres passeiam-se em roupas curtas, há edifícios envidraçados de todas as formas e feitios a rasgar as nuvens, autoestradas com oito vias, o metro é aéreo, os primeiros táxis voadores estão anunciados para 2026. É tudo em grande. E há arte contemporânea, galerias, museus. Os Emirados querem tomar conta do futuro, estar na vanguarda, diversificar a economia. Depois das pérolas e do petróleo, apostaram no turismo e o Dubai é a joia da coroa – em 2024, o Aeroporto Internacional do Dubai bateu recordes, ao receber mais de 90 milhões de passageiros. O mais alto edifício do Mundo, Burj Khalifa, inaugurado em 2010, foi um dos pontos de partida para atrair visitantes, 828 metros de altura, 160 andares. Para se tomar consciência, em 2008 a cidade tinha 25% das gruas de todo o Mundo, a construção em ebulição. Se subirmos ao Dubai Frame, moldura gigante, de 150 metros de altura, no meio do Zabeel Park, espaço verde virado para a tecnologia, a vista panorâmica permite distinguir a zona velha e a zona nova.
É aqui que entram os direitos das mulheres, os Emirados querem chamar gente e investimento e não querem sombras a travar as ambições. Maria do Céu Pinto, professora da Universidade do Minho, que estuda Médio Oriente e mundo islâmico, reconhece que “na zona do Golfo Pérsico, tem havido progressos importantes”. “A partir do momento em que as mulheres podem ter uma atividade profissional, podem estudar, conduzir, é uma transformação política e social significativa. É surpreendente esta evolução na região, há uns anos era impensável que as mulheres estivessem tão presentes na sociedade.” Com uma ressalva. “A nível social e religioso, vigora um regime conservador, com um islão sunita na base, e não creio que haja espaço para ir além do que já existe. A modernidade será sempre contida dentro dos limites da religião.” As transformações, acredita, estão ligadas ao projeto interno “de dinamizar a economia, para não estarem tão dependentes do petróleo, de apostar na formação dos jovens, de se posicionarem nos setores de ponta da tecnologia, de atraírem universidades, grandes museus internacionais, estrangeiros”.
Camila Patrial é brasileira, fala pelos cotovelos, tem 26 anos, mudou-se há dez para o Dubai. “O meu pai veio primeiro e depois viemos todos. Apaixonei-me pelo Médio Oriente, fiz a faculdade aqui, é aqui que me sinto em casa.” Lidera food tours na Frying Pan Adventures, leva visitantes para fora da zona turística, pelos bairros antigos, de edifícios baixos e pálidos, onde se pode ver o céu, para experimentarem comidas em cafés e restaurantes autênticos. “Apesar das tradições islâmicas, o Dubai é uma cidade superinternacional, com uma presença massiva de expatriados. Como mulher, nunca senti que precisei de me ‘podar’, mas é importante ter noção do contexto e respeitar os costumes locais. Nada de roupas muito curtas em locais mais tradicionais, de consumir álcool em espaços não licenciados ou demonstrações exageradas de afeto em público. Mas no dia a dia é tudo muito tranquilo. Não sinto isto como uma limitação, mas como um gesto de respeito ao sítio onde vivo.”
Tendo crescido no Brasil, o termo de comparação é inevitável. “Nunca me senti tão segura como aqui. Posso sair sozinha, conduzir à noite, trabalhar com liberdade, nunca tive medo. Claro que não é uma democracia, mas, se entendermos as regras do jogo, podemos viver aqui com muita qualidade de vida.”
O divórcio, os passos dados
Seguindo pela zona antiga, é no histórico bairro Al Fahidi, no Sheikh Mohammed Centre for Cultural Understanding, antiga torre de vento restaurada, que encontramos Sara Yousef, emirati de gema, de hijab preto a envolver a cabeça. Há que tirar os sapatos à entrada antes de pisar o longo tapete vermelho de estilo beduíno. Serve-nos um café árabe e um pequeno-almoço típico, antes de revelar ser casada e não ter filhos. E sim, “não é comum não ter filhos, gera sempre estranheza”. O marido não tem outras mulheres, embora legalmente possa ter até quatro. “Hoje, isso não é promovido, até porque, ao contrário de antigamente, em que a primeira mulher era a legal, agora todas têm os mesmos direitos e estão ao mesmo nível. Por exemplo, se vai de férias com uma, tem de ir com a outra. E é difícil ser justo para todas as mulheres”, explica. A par disso, no contrato de casamento, já é possível exigir ser a única esposa.
Casar com um homem não emirati até é permitido, “mas a mulher perde todos os seus direitos, nomeadamente educação e saúde gratuitas, e os filhos não terão a nacionalidade”. Porém, Sara prefere chamar a atenção para outros aspetos que lhe importam mais, focar nos progressos. “Se não quiser, não tenho de fazer trabalho doméstico. E se tiver de o fazer, o meu marido pode ter de me pagar, é um acordo. São direitos que tenho como mulher muçulmana.” Carrega a cultura com orgulho desmedido, guarda um respeito sagrado à família real e chega mesmo a dizer: “Nada me preocupa em relação aos meus direitos enquanto mulher aqui. Mesmo quanto à liberdade de imprensa, tenho acesso a tudo e mal temos motivos para criticar.” Desde há uns anos que a mulher emirati também se pode divorciar. “E o meu marido não recebe nada das minhas coisas. Tenho independência financeira, os salários são iguais para homens e mulheres.”
Ana Cristina Marques, socióloga, professora universitária no Cazaquistão, tem-se dedicado a fazer investigação sobre as questões de género no Médio Oriente e olha para o tema do casamento. “O facto de os Emirados terem mudado a lei para possibilitarem à mulher iniciar o divórcio é um grande avanço”, comenta, para logo acrescentar: “Muitos países do Médio Oriente estão a incorporar diretivas internacionais de não discriminação das mulheres e os Emirados estão muito à frente, nos últimos anos houve mudanças incríveis. Fiquei muito admirada quando percebi que a participação das mulheres no parlamento é de 50%”. A transformação tem também a ver com uma competição regional, com o Catar, com a Arábia Saudita. “As questões de género são consideradas hoje como progressistas e quanto mais igualdade houver, melhor se posiciona o país.”
Só que a cultura tem raízes e a religião tem peso. “Há muitas evoluções e uma grande qualidade de vida, mas depois onde é que as mulheres emiratis trabalham? Sobretudo no setor público, porque são setores considerados mais aceitáveis, onde estão protegidas.” Ainda subsiste a visão da mulher que é esposa, que é mãe. “Podem escolher o marido, iniciar o divórcio, mas poderão namorar? Só às escondidas. Ainda há uma visão muito moral do comportamento da mulher, um controlo da sexualidade, não pode andar com todos e mais alguns. Mas, lá está, elas também não querem, faz parte da cultura, uma visão muito familiar da vida, quase tribal. E, claro, continua a haver muita vigilância sobre o seu corpo, ainda que muitas usem o hijab por opção, porque se sentem bem assim.”
Sara gosta do hijab, é licenciada em Belas Artes, chegou a trabalhar nessa área, mas tinha pouco tempo para a vida social, largou, dedica-se agora a ajudar visitantes a entender a cultura e costumes emiratis. Alegra-se por ver tantos estrangeiros, tanta multiculturalidade e por poder assistir a uma cidade a crescer à velocidade da luz. O Dubai abriu as portas ao Mundo e começa a levantar a ponta do véu dos direitos humanos.